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Efeito Mirabel - Põe na conta

13 de Janeiro de 2015, por Rafael Chaves

Gustavo, aos seis anos de idade, sabia, tinha certeza de que era pobre. Essa certeza de sua condição veio do seu tempo de jardim de infância. Convidado para as festinhas de aniversário de seus colegas, sua mãe, invariavelmente, mandava-o escolher o presente “um sabonete ou uma pasta de dentes, meu filho”. E ele ia, taciturno, para a festinha esgueirando-se para entregar seu presente embrulhado em papel de presente reaproveitado. E fugidio para não ver a reação do presenteado diante do sabonete ou da pasta de dentes. A convicção era corroborada no dia a dia da escola quando, na hora do recreio, expunha sua merenda: invariavelmente um pão murcho untado metodicamente de manteiga e suco de “laranja com peixinhos”. Os peixinhos, segundo ele, eram os gominhos da laranja que boiavam sobre o suco quente e passado (criança é capaz de encontrar situações inusitadas e poéticas em sua imaginação). Ato contínuo, seus coleguinhas tiravam Mirabel de suas merendeiras.

Mirabel passou a ser o sonho de consumo de Gustavo. Talvez seu primeiro desejo consciente, seu primeiro objetivo premeditado e que lhe traria, em tão tenra idade, a redenção, realização e plenitude como ser humano. Encorajado, perguntou ao colega aonde ele conseguia Mirabel todos os dias.

- Coloca na conta! – solucionou o seu colega.

No dia seguinte, Gustavo dirigiu-se à cantina da “Tia” na escola, apoiou-se na ponta dos pés e pediu um Mirabel de chocolate: “põe na conta”. E todos os dias, por quase um mês, comeu invariavelmente um Mirabel e mandou colocar na conta. Alegre e satisfeito expunha seu novo lanche aos coleguinhas. Até o dia em que a “Tia” lhe entregou um papel e pediu para ele entregar à sua mãe. Era a inexorável conta!

Quando sua mãe se deu conta da conta, a coisa ficou preta para Gustavo. Sua mãe, de óculos enormes, tipo fundo de garrafa, bobs nos cabelos, segurando a filha bebê ainda no colo chamou-o num canto e passou-lhe a lição e reprovação em alto e bom som. Um ogro, segundo ele (criança é capaz de encontrar situações inusitadas e pavorosas em sua imaginação). Talvez tenha sido a primeira vez que Gustavo tenha aprendido que todo sonho, para se fazer acontecer, tem um custo.

Alguns anos se passaram e Gustavo, primogênito que era, foi encarregado de buscar pão para a família todos os dias, “só pão”. Estranhamente os pães eram comprados na sorveteria. E Gustavo, em meio a guloseimas no inverno, e gelados no verão, cumpriu rigorosamente sua missão, “só pão”, “põe na conta”, como lhe determinara sua mãe. Efeito Mirabel, fruto dos corretivos que sua mãe lhe impusera, Gustavo restringiu-se a comprar estritamente o número de pães que lhe disseram para comprar, nada mais.

Até o dia em que soube por boatos que seus irmãos, inclusive sua irmã que era bebê de colo à época do Mirabel e que já crescera, teriam aprendido a palavra mágica “põe na conta” e andavam se esbaldando na sorveteria. E flagrou sua irmã bebendo Coca-Cola além da “conta”.

Suspeita confirmada, Gustavo não se fez de rogado:

- Uma Coca-Cola! – pediu na sorveteria.

- Põe na conta! – emendou.

Alguns dias depois, a ordem se estabeleceu e as regras foram confirmadas em uma reunião familiar. Talvez tenha sido a primeira vez que Gustavo tenha aprendido que, para realizar um sonho, os caminhos são vários e tortuosos. Hoje, adulto, toda vez que manda colocar na conta, a imagem de um ogro de óculos fundo de garrafa e bobs na cabeça parecem censurá-lo, mas a imagem de sua irmã tomando Coca-Cola ameniza a situação (adultos cultivam traumas inexplicáveis em sua imaginação).

- Põe na conta!

 

E se frustrava diante dos coleguinhas, que todos os dias levavam Mirabel para o lanche.  

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