Ele lhe disse que a situação tinha chegado a tal ponto que nem todo o bigode junto, arrancado a poder de cera quente de depilação, podia mais atestar o compromisso e a honestidade de alguém. “Sujeito quando resolve ser fintão nem exorcismo em terreiro de macumba resolve. Ah saudade do tempo do fio de bigode!”, emendou. A indignação dele veio em razão de uma dívida que um sujeito tinha com ele e que já tentara de todo modo receber, inclusive através da justiça, e nada de receber. E o sujeito ainda tinha a capacidade e o desplante de caçoar dele, quando tinham a oportunidade de se encontrar pelas ruas da cidade, desferindo risos maquiavélicos e descarados a ele. “Desgraçado, filho de uma égua!”, xingou.
O fio de bigode lhe lembrou os tempos em que se mudou para Resende Costa. Ele, recém-formado, recém-casado, recém-empregado e recém-chegado, começou a circular com o seu pai a tiracolo, para que ele o apresentasse aos comerciantes e, naturalmente, lhe abrissem crédito. Crédito, diga-se de passagem, era a tal da caderneta. Na caderneta anotavam as compras do mês, linha por linha, produto por produto, preço a preço para, no final de mês, somar tudo e pagar conta. Costumes!
Ele tinha esse desejo recôndito de ter uma caderneta com seu nome estampado na frente. Sinal de que já podia andar com suas próprias pernas, seguindo sua vida e seu destino, independente. Poderia, então, fazer sua própria lista de compras e incluir nela coisas que quis quando era criança e não podia: manteiga, ao invés de claybom, doce de leite, ao invés daquela goiabada de chuchu e pirulito Zorro, hummmm, pirulito Zorro!
E o pai dele, que sempre privilegiou o indispensável, começou por levá-lo ao armazém do Cirilo, onde se vendia arroz, feijão, enlatados, óleo, sal, embutidos, os mantimentos, enfim, tudo atrás do balcão. Nessa época ainda não havia essa variedade que se tem hoje. Arroz era arroz, feijão era feijão, massa de tomate era massa de tomate, tinha escolha de marca não. E nem você podia atravessar o balcão, para selecionar o que fosse levar. Self-service foi uma inovação que veio depois.
Lembrou-se da cortesia com que o Cirilo os recebeu, cumprimentando seu pai que há tempos não via. Todavia sentiu desconforto quando percebeu, pela expressão em seu rosto, que Cirilo abria a caderneta meio a contragosto, quase que por dever. Alguma coisa estranha e nebulosa pairou no ambiente, que veio a se tornar conhecida e transparente quando, pouco tempo depois, o armazém fechou, encerrando suas atividades. E sua caderneta veio e se foi do mundo dos negócios praticamente virgem, quase intata.
Enquanto seu amigo desfilava impropérios contra seu devedor, cada vez mais efusivos e descontrolados em razão das inúmeras cervejas que haviam tomado no Bar da Maura naquele anoitecer de sábado, ele, em seus devaneios, somente assentia com a cabeça. “Emblemático”, pensou ele sobre o caso do armazém, o caso da caderneta que nasceu morta. De repente, ele o cutucou, apontando para o outro lado da rua: “é ele, é ele!”. E do outro lado passava um sujeito rindo um riso de escárnio em nossa direção...