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O dia de São Nunca

14 de Novembro de 2009, por Rafael Chaves

Oh! mês de agosto! Mês de os ventos visitarem os campos das vertentes. Aqui deixam os altos das lajes e dos quatro cantos e visitam também os vales, planícies e grotões da terra. Agosto dos ventos que vêm assobiar em nossos ouvidos que é tempo de soltar a imaginação, de voar junto aos papagaios, pipas, arraias, cafifas e pandorgas que infestam os céus! Papagaios que não falam nem dão o pé. Pipas que não carregam água. Arraias que não nadam. Cafifas que não dão azar. Pandorgas esqueléticas. Já que não temos asas nem conseguimos controlar o voo dos pássaros (e o objeto do homem é querer controlar tudo), voam as pipas e papagaios, em nosso nome, como se olhos tivessem, para nos contar o que se vê do céu.

Fael, garoto esperto, mas ainda experimentando a inocência dos seus 6 anos, deixou na lembrança as bolinhas de gude. Ele havia guardado todas elas no seu armário, escondidas sob as roupas, bem no fundo, descansando até a próxima temporada. Afinal, bolinhas de gude, em tempos de vento, não valiam mais nada. Valeram mais que pérola! Foram motivos de brigas, desavenças e inimizades (que poderiam perdurar por toda vida). Mas em agosto ninguém mais se interessava por elas.

A época era de pipa! Era o tempo de colher bambu no mato, de afiar e lixar as varetas do bambu, até deixá-las, meticulosamente, do mesmo tamanho e com o mesmo peso. E Fael não se fez de rogado. Resgatou do cofrinho algumas moedas, fruto da venda de algumas bolinhas de gude - ainda do tempo em que elas valiam - e partiu em busca do seu intento. Comprou papeis de seda coloridos - das cores do seu time do coração -, e carretel de linha 10, fez grude no fogareiro - que improvisou no quintal -, juntou as varetas e passou a construir seu engenho aeronáutico. Situou as varetas em forma de cruz de Lorena e amarrou as varetas menores à vareta central, passou a linha pelas extremidades das varetas mantendo-as em esquadro perfeito. Recortou o papel na medida, deixando a borda em volta para a cola. Depois da cola seca envergou a vareta superior, aerodinamicamente. Dispôs a linha do tem-tem na medida certa e, finalmente, esticou a linha para fazer a rabiola.

Dia seguinte Fael saiu à rua em contentamento segurando sua obra-pipa. Naquela tarde uns dez guris já tinham posto suas pipas ao vento. Fael desenrolou uns metros de linha da lata de óleo que lhe servia de “tomador de linha” e correu contra o vento até sua pipa alçar voo. E alçou. Entretanto seu contentamento durou pouco; durou até o momento em que viu um sujeito liberando e recolhendo a linha pelo “tomador de linha”. E ele ali, com aquela sua geringonça acessória ineficiente: uma lata de óleo servindo de “tomador de linha”. Fael, apesar da beleza e da funcionalidade de sua pipa, sentiu-se diminuído e desajustado. E “tomador de linha” não tinha como ele construir. Remoeu seus pensamentos e suas angústias até se lembrar de Leo. Leo ia dar um jeito nisso para ele.

Leo era um seu vizinho, uns 10 anos mais velho que Fael e, portanto, já era um doutor em pipas e tudo que se relacionava com elas. No quintal da casa de Leo havia uma coberta com todo tipo de tralha, inclusive uma coleção exuberante de pipas de todos os modelos e para todos os gostos e, lembrou-se, também, de “tomadores de linha”. Leo era equipado, um batman das pipas.

Então recolheu sua pipa enrolando a linha na lata e foi ter com Leo. Quando chegou à casa de Leo, por uma dessas coincidências, Leo estava exatamente preparando seus equipamentos para soltar uma de suas pipas. Fael ficou ali, parado, olho fixo no “tomador de linhas”, maravilhado. Depois do assusto inicial, coisa de peixe fora d’água, estabeleceu-se um palavrório até que Leo pressentiu na sua sapiência de menino mais velho que Fael estava ali por algum motivo.

- Vou te dar um tomador de presente! - disse Leo, adivinhando os desejos de Fael.

Os olhos de Fael não tinham mais de onde tirar brilho da luz do dia, mas tremeluziu a luz de dentro da sua alma cristalina de inocência.

- Vai? Quando? - perguntou Fael.
- Um dia desses eu te dou - completou Leo, nas suas lábias.
- Mas quando?
- Ó, dia de São Nunca, eu te dou.

Fael ficou meio confuso do seu calendário, pois apartava seu tempo em manhãs, tardes e noites, em estações de chuva ou de sol, em temperaturas de frio ou de calor, em épocas de jogar bolinha de gude ou de soltar pipa, em períodos de aula ou de férias, em horas de comer ou de beber. Fael ainda não aprendera a dividir seu calendário em tempos sagrados e tempos profanos.

- Quando é dia de São Nunca? - arriscou Fael, enquanto todos que ali estavam entoavam um riso motejador e malicioso.

- Ó, marca aí, marca aí dia 30 de fevereiro - emendou Leo dando o assunto por encerrado, enquanto saia sem mais explicações com seus petrechos para soltar pipa, que o vento ventava incitativo naquele agosto.


Para o Leonardo da Dona Ló que agora, muitos anos depois, fabrica aguardente para outros voos e outros “tomadores”.

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