Queria se desculpar com os cristãos de toda denominação, com as famílias que se reunirão à meia-noite para a ceia, com os colegas que trocarão presentes de amigo oculto e com as crianças que terão, depois de um ano de bom comportamento e de terem se alimentado bem, inclusive jiló, seus cobiçados brinquedos, no Natal. Queria se desculpar com os que compraram roupa branca alvinha e novinha em folha, com os que gravaram um CD de axé baiano e ensaiaram a dança do “rebolation” e com os que puseram o espumante na geladeira (sidra não, por favor), para o réveillon. Que lhe perdoassem, mas andava meio desenganado com essas festas. Festas obrigatórias, tal qual era o carnaval, o sábado de aleluia ou o dia do seu aniversário, festas com data marcada para ser feliz. Natal de roteiro lacrimejante e réveillon de desfecho previsto. Todo ano a mesma coisa! Todo ano feliz natal e próspero ano novo.
Naquele dia a primeira visão que lhe veio foram as das decorações dos corredores dos “shopping centers”, das imensas árvores-de-natal, dos papais-noéis bochechudos e vermelhos enfeitando as vitrines das lojas, do alvoroço de sacolas abarrotadas de compras trombando umas nas outras, dos toc-toc-toc dos saltos altos das madames percutindo no piso de granito. Enquanto a imagem de um menino recém-nascido, espreitado por imagens de seus pais, sob a indiferença de imagens de vaca, jumento e ovelhas e de seus pastores, dormia à sombra de luzes cintilantes e artificiais, tentando reproduzir uma cena bucólica, singela, pura, modesta e humilde que acontecera há 2010 anos antes.
Depois as das crianças maltrapilhas fugindo e se desviando das trocas de tiros nas favelas do Rio de Janeiro, tentando sobreviver até o próximo dia 25 de dezembro, na esperança de receber seu presente, que peticionara numa cartinha endereçada a um velhinho lá no polo norte. E das outras crianças famélicas e subnutridas das periferias, do agreste, dos orfanatos, dos cantões de todo o mundo.
Depois as dos filantropos distribuindo presentes de última hora, à guisa de alcançar suas indulgências, receosos de que, de fato, haveriam um dia de ser julgados pelos seus atos e omissões.
Depois as dos filmes e histórias lacrimejantes, repletas de esperanças na humanidade, traduzindo generosidade, altruísmo e virtude. Aquelas mesmas histórias emblemáticas que, talvez, ele tenha contado aqui num outro final de ano qualquer e que - moral da história – revelavam que as ações individuais e isoladas de alguns poderiam indicar que tudo poderia dar certo, que haveríamos de ter um “happy-end”.
Depois e por último as dos comensais estourando espumantes à zero hora do dia primeiro de janeiro, lavados na alma e na roupa branca, abraçando-se e beijando-se uns aos outros, irmanados amigos e inimigos, reconciliados casais e desafetos, reconhecidos os desconhecidos, prontos para uma nova etapa da vida no próximo ano, próspera e feliz, se Deus quiser! Todos alegres e satisfeitos, da boca prá fora! Pensou que todo ano-novo deveria ser agendado para uma segunda-feira, o dia mais propício às promessas (de fazer regime, de frequentar academia, de parar de fumar, de etc.) que jamais serão cumpridas.
Não! Que lhe desculpassem todos, mas não estava com o espírito de natal e ano-novo! Não pretendia comemorar nada, ou talvez comemorasse, mas lembrando-se daquelas imagens que o tinham perseguido naquele dia. Havia algo de errado no ar, o buraco lhe parecia mais fundo, o buraco não tinha fundo...
O fundo do buraco!
14 de Dezembro de 2010, por Rafael Chaves