O mundo não é o mesmo sem meu pai. É difícil ir para casa sabendo que não vou encontrá-lo mais, que ele estará fazendo parte do mundo das lembranças. Conviver com a morte (paradoxal que seja) poderia ser simples, mas não o é. Esperar pelo tempo do esquecimento é penoso.
Meu pai teve uma morte digna, bela e significativa. Estávamos todos da sua família reunidos em uma pousada, às suas expensas, para comemorar os noventa anos de vida de minha mãe. Era um dia de festa, de alegria, de comemoração. Terminadas as festividades daquele sábado, recolheu-se ao quarto. E foi no quarto, minutos depois, longe de médicos, enfermeiros, aparelhos, hospital e perto de nós que terminou sua caminhada. Meu pai sempre foi assim, simples, direto e silencioso, como sua morte. De fato, não lhe caberia morrer na insensibilidade e impessoalidade de uma cama de hospital, travestido de aparelhos e tubos, ao som de um bip bip bip monótono e decrescente e cada vez mais espaçado. A nós também não caberia aguardar a notícia fatídica em algum corredor ou sala de espera. A ele sempre interessou a sua casa. A ele assentava a mesma roupa, o mesmo estilo, dia após dia. A seus ouvidos agradavam as sinfonias, que ele acompanhava como se o seu dedo fosse a batuta. Da última vez que ele foi internado – e em outras também –, o que lhe importava era sair logo do hospital:
- Quero ir para casa, quero ficar ao lado de sua mãe, meu filho! Estou com saudades dela!
As pessoas quando morrem são santificadas. A elas é reservado um lugar no paraíso, bem antes do juízo final. A morte tem essa capacidade de consumir, além do corpo, também os malfeitos. Meu pai não era um santo. Entretanto era, com certeza, um homem de princípios e de valores. E virtuoso. A simplicidade, o desprendimento, a moderação, a concisão, a serenidade, a compaixão e a modéstia eram suas companheiras. Se eu pudesse simbolizar, abreviar seus ensinamentos e seu legado eu creio que poderiam ser essas três frases sugestivas que ele costumava repetir quando lhe davam oportunidade de falar: 1) não dê passos maiores que as pernas; 2) pouca coisa não se regra, acaba logo com isso que sossega; 3) paz e paciência. Há tanta sabedoria nisso!
A morte do meu pai veio com outros acontecimentos mais ou menos concomitantes. Duas de minhas irmãs viraram avós. Isto porque uma sobrinha minha tornou-se mãe e um sobrinho meu tornou-se pai. A vida segue seu rumo, inexorável. As gerações se sucedem e a minha se torna a dos avós. Meu pai, morto, perpetua seus genes, ainda que misturado, compartido com outros. Aliás, os seus nem são tão seus assim, que vieram de outros que lhe antecederam. Uma nova vida que surge é a vida se renovando. Deve ser por isso que comemoramos o nascimento.
“Não quero ir. A vida é tão boa!” Choramos diante da morte porque sabemos que a morte nos tira essa vida, que jamais teremos de volta. A morte nos lembra de que somos finitos. A possibilidade do paraíso não é consolo, a vida eterna não é consolo. Ninguém quer trocar uma pela outra! Mário Quintana disse que “a morte é a libertação total: a morte é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapato”. Hoje, quando eu chegar em casa vou me deitar de sapatos, sem culpa. Para quê esperar a morte para sentir a leveza da liberdade?
Quero viver, repito. Mas quando eu morrer eu quero morrer uma morte encantada, como foi a de meu pai. Ele morreu deitado numa cama quente e confortável, rodeado das pessoas que amava, fartas e felizes, jogando um jogo de buraco imaginário contra minha mãe. E creio que antes de seus olhos terem perdido o brilho da vida ele sonhou ter se levantado da cama e se despiu e então, totalmente nu, disse à minha mãe:
- Duas canastras limpas! Tô batido! – e o jogo acabou.