No primeiro domingo deste ano, fui me encontrar com a Filomena. Ela completará 91 anos de idade no próximo dia 5 de fevereiro. Cheguei no horário marcado. Ela já me aguardava do lado de fora da casa, com um sorriso próprio dos que adoram a vida. Não por acaso, ela já planeja uma grande festa para o dia 5 de fevereiro de 2030, para celebrar seu aniversário de 100 anos de idade. Viúva e mãe de seis filhos, ela nasceu em Resende Costa. Filomena Andrade Lourdes Resende, porém, anda um tanto inquieta devido à pandemia do coronavírus que a impede de andar pela cidade, visitar amigos, ir à missa e cantar no coral do qual participa há mais de 70 anos.
Filha de José Luís de Lourdes (1882) – o Zequinha de Lourdes –, natural de Carmo da Mata (MG), e de Isbela Andrade Lourdes (1896), do Morro do Ferro, próximo de Oliveira (MG), teve oito irmãos, sendo seis mulheres do primeiro casamento do pai e dois homens do segundo casamento. Empreendedor, pelo que parece – ele era celeiro, mestre de obras e proprietário de uma jardineira que ligava nossa cidade a São João del-Rei –, construiu na cidade uma casa para cada uma das seis filhas do primeiro casamento. Entre elas, estão a da Pensão do Boqueirão, como é conhecida, e a do senhor Barbosinha, o farmacêutico. Ambas as casas localizadas na rua principal da cidade, a Gonçalves Pinto.
O imóvel que construiu para a família na década de 1920, localizada na Rua Gonçalves Pinto, número 114, está sendo demolido. Nessa casa, Filomena morou até os quinze anos de idade. Em 1945, seu pai a vendeu para o senhor Sylla Reis e quem nasceu nela foi o padre Fábio Rômulo Reis. Daquele tempo ela se recorda dos bons vizinhos: “Dona Maria Joaquina, biscoiteira, dos meus avós Quinzinho e Nhazinha e da enorme jabuticabeira que tinha no quintal.” Na fonte da chácara ela buscava água para beber, enquanto seus dois irmãos, João Batista e José Maria, ajudavam a mãe a cuidar das galinhas. Outra boa lembrança são os jogos de vôlei nas lajes de cima, quando os meninos ficavam à distância, deitados no chão apreciando-as, e ao jogo também, prontos para buscar a bola quando esta descia laje abaixo, principalmente em direção ao Buraco do Inferno.
Outra lembrança são as cenas das boiadas que passavam pela rua, sendo conduzidas em direção a César de Pina para, de lá, seguirem de trem de ferro em direção aos matadouros dos centros de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Os últimos moradores da casa de nº 114, na rua Gonçalves Pinto, centro de Resende Costa, foram o casal Aires Reis (Neném do bar) e Altair e seus filhos. Abandonada há alguns anos, os novos proprietários solicitaram autorização para promover a sua demolição. Isso agradou alguns e desagradou a outros. Os descontentes acham que o imóvel deveria ter sido tombado pelo Conselho Municipal de Patrimônio e Cultura. Mas isso não foi possível. Outros não veem motivo para mantê-lo de pé, ante o estado precário de conservação em que se encontra.
Eu conheci bem esse casarão de cinco janelas e cinco portas de madeira na parte de baixo, onde funcionava a selaria. Quando menino, por vezes lá me encontrei com o Nenzito para formarmos um duo – eu na requinta, ele na clarineta – e tocar parte do repertório da Banda de Música Santa Cecília, da qual participávamos, ou os boleros, polcas e valsas como “Branca”, “Saudade de Matão” ou “Saudade de Ouro Preto”, de que gostávamos muito.
De décadas atrás, do lindo casario da Rua Gonçalves Pinto – que chamamos de avenida– não temos mais nada. Os que querem saber como era a rua e suas as casas devem recorrer aos relatos dos mais velhos ou às fotografias. Os mais velhos, também, da forma como recordou Filomena, lembram-se, saudosos, do footing – o andar para lá e para cá dos jovens –, momento precioso para o flerte. Sábados e domingos à noite, enquanto os rapazes caminhavam em uma direção, podiam cortejar as moças que vinham no sentido contrário.
Infelizmente, o casario que mereceria tombamento foi sendo substituído pelos atuais imóveis. O que havia de harmonia nas construções, com seus telhados característicos de quatro águas, janelas e portas de madeira, se foi. As ruas, avenidas e praças lindamente calçadas de paralelepípedos estão, a contragosto, sendo descalçadas ou cobertas por massa asfáltica. Quanto aos imóveis, algumas perdas são irreversíveis, como é o caso do casarão da Rua Gonçalves Pinto, 114.