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Assobio de cobra

16 de Julho de 2015, por Cláudio Ruas

Quem nunca (ou)viu um assobio de cobra, espero que continue sem saber como é de verdade. Assim como a cascavel, que chacoalha seu guizo em sinal de estresse, para espantar o inimigo, outras cobras emitem um som com o mesmo objetivo, que remete a um assobio humano, só que mais chiado e grave (grave mesmo, pode correr!). Porém, tem um outro “assobio de cobra”, lá pras bandas mineiras da Serra da Canastra, que é o oposto: serve para aproximar o amigo e ainda esquentar o peito, o beiço e a alma. É o nome de um prato, uma espécie de caldo revigorante de inspiração tropeira e com ingredientes especiais até no contexto em que é preparado.

Quem assiste ao clássico programa Globo Rural – uma das poucas coisas que ainda valem a pena na tevê – sabe que o bloco final é guardado para uma reportagem especial, sempre muito interessante. E que tem a cara do programa e, muitas vezes, do seu apresentador Nélson Araújo, que volta e meia vai a campo (literalmente) e traz de volta no balaio belíssimas reportagens, algumas narradas artisticamente em versos. Às vezes eu até esqueço que o Globo Rural é da Globo (ele tem luz própria). Uma dessas reportagens mais que especiais foi ao ar isturdia, e conseguiu aquecer direitinho um domingo frio de beira de inverno, só de mostrar o tal do “assobio de cobra”.

Já deu para perceber que o Nélson Araújo é um freqüentador apaixonado da Serra da Canastra, haja vista as deliciosas matérias que de lá saíram. Como a inesquecível “mutirão do porco”, em que mostrou de focinho a rabo - e em verso e prosa - todo o processo da matança e arrumação de um baita porco na roça, da chegada prévia dos parentes e vizinhos para ajudar, até a celebração final (é de se emocionar!).

Já o “assobio da cobra” se dá na ocasião de uma cavalgada turística que percorre um caminho antigo de tropeiros e acampa à noitinha na beira de uma prainha. A fome da comitiva é amansada com um panelaço de vários frangos caipiras com gordura de porco, feito propositalmente para sobrar para o dia seguinte, o dia da cobra assobiar. No amanhecer gelado na beira do corgo, o cozinheiro começa a preparar o café da manhã reforçado, nada de chá com torradas. É o assovio de cobra mesmo. Retira um pouco do excesso da gordura e reacende o fogo no caldeirão com os restos do frango, acrescenta água, bastante pimenta amassada e deixa o caldo tomar jeito e corpo. Ao final, uma poeirinha de farinha de milho para engrossar, cheiro verde e pronto.

Mas e o nome? E a cobra? O organizador da cavalgada explica: em função da quentura do caldo e da pimenta, logo em seguida que entra na boca, automaticamente o beiço cuida de trazer e levar um sopro de ar para esfriar o ambiente, fazendo um barulho igual ao “assobio de cobra.” Genial!

Interessante como aqueles que têm um contato maior com a natureza – como os roceiros mineiros – são capazes de criar nomes de pratos engraçados e curiosos, fazendo analogia com animais e situações vividas no seu cotidiano. Péla-égua, vaca-atolada e galopé são só alguns exemplos dessa interação tão linda e salutar para nossa cultura gastronômica de raiz.

Como ocorre muito em Minas, o preparo e o consumo de um prato acabam sendo uma boa desculpa para promover um acontecimento, um encontro, uma viagem e, como no caso em questão, uma cavalgada. O caldeirão de assobio de cobra ainda tem como ingrediente oculto uma paixão curiosa pelo tropeirismo, essa atividade tão importante desenvolvida pelos tropeiros do passado, que juntamente com suas tropas carregaram o Brasil nas costas. O tempo passou, a “modernidade” forçou passagem, mas a nossa vontade de se enfiar no mato a cavalo e se alimentar primitivamente ainda continua. Benzadeus.

 

[Links das reportagens para ver na internet:

1) “assobio de cobra”: http://globotv.globo.com/rede-globo/globo-rural/v/antigo-costume-tropeiro-carrega-historias-de-quem-cavalga-pela-serra-da-canastra/4218160/

 

2) “mutirão do porco”: https://www.youtube.com/watch?v=1oVnhWpeI-4]

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