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E vamos botar água no feijão

17 de Outubro de 2014, por Cláudio Ruas

Em outras das nossas prosas já botamos lenha na fogueira do fogão, cozinhamos o arroz (o parceiro brasileiro do feijão) e já até fizemos uma feijoada completa, nos moldes da música do Chico. Mas ainda precisamos render esse assunto “feijão”, alimento-base da culinária brasileira e, principalmente, mineira, com seus tutus, tropeiros e feijões refogados no alho e na banha de porco. Já que é assim, então vamos botar água nesse feijão.

É bom lembrar que não é qualquer alimento que permite se render sem perder a qualidade apenas colocando mais água. O feijão, sim, graças ao poder do seu grão que libera sabor e consistência de caldo, pelo menos em grande parte das suas variedades, que por sinal são muitas.

O mais consumido no Brasil é o carioquinha, cujo nome não tem nada a ver com o costume dos cariocas, pelo contrário. Lá eles só querem saber do feijão preto (e não sabem o que estão perdendo...). Ele foi assim batizado porque sua cor e suas listras lembravam uma raça antiga de porco, chamada “carioca”. Caiu no gosto dos brasileiros, até porque é uma espécie altamente produtiva em relação às demais.

Outro bem interessante na minha opinião é o feijão jalo, que é maior e dá um caldo bem bacana. Ainda tem textura firme depois de cozido, o que o torna ideal para fazer um tropeiro, prato que não permite que o grão esteja molenga demais (senão vira tutu!). O vermelho e o roxinho também são interessantes no tropeiro, assim como o rapé, um feijão especial, de textura mais firme ainda, muito saboroso e que merecia dar as caras no mercado. Tempos atrás ganhei um quilo de feijão rapé espetacular do amigo Edgar do Joel, garimpado por ele lá pras bandas do povoado do Ribeirão. O Edgar é um grande entusiasta e conhecedor de feijões, capaz de elencar variedades inimagináveis no nosso repertório.

Destaco também um feijão arredondado, consumido mais pro norte mineiro, o feijão andu. Ele também é chamado de guandu ou feijão de árvore, já que seu pé é uma árvore mesmo. Ainda pode ser consumido verde, depois de um rápido cozimento. Vira um delicioso vinagrete ou uma farofa supimpa, de preferência quando refogado na manteiga de garrafa.

Subindo mais no mapa brasileiro, encontramos também o feijão de corda e o fradinho, muito consumidos no nordeste e usados respectivamente no preparo do baião-de-dois e do acarajé, sendo espécies mais secas e que dão menos caldo. Virando pro lado da floresta amazônica, a turma usa bastante o “manteiguinha de Santarém”, muito bem acompanhado pelas especialíssimas farinhas de mandioca que existem por lá.

Mas como não vão caber mesmo todos os tipos de feijão no cozimento dessa prosa, vou agora contar um causo interessante, que ilustra muito bem a força do feijão, tanto nutricional, como culturalmente na nossa gastronomia mineira.

O ilustre escritor brasileiro João Guimarães Rosa, mineiríssimo de Cordisburgo e reconhecido internacionalmente, se enfiou no nosso sertão a fim de se inteirar mais daquele cotidiano. Conheceu e passou um tempo com um tal de Manuelzão, vaqueiro e cozinheiro de tropa. Figurinha bem típica do nosso interior, sábio, sereno e bom de prosa que só vendo - ou ouvindo. O tempo passou, os livros do “João Rosa” inspirados naquele sertão ganharam o mundo, assim como o personagem Manuelzão. Esse contou em uma entrevista como foi a introdução do escritor no universo gastronômico dos vaqueiros, depois de passar um perrengue no primeiro dia de lida, apenas com um cafezinho com biscoito na barriga: “quando foi de manhã, e nóis levantemo...na hora de nóis comê fejuada, ele falô comigo: eu agora vô fazê igual ocêis...que se não fizé do jeito que ocêis faz não vai mesmo. De manhã bebeu um golo, comeu um feijão com um toicinho e uma carne seca misturada nele, e nóis saiu pro campo. Aí eu falei: hoje nóis chega mais cedo”.

Ou seja, foi graças ao feijão gordo (e até à cachacinha!) que Guimarães Rosa conseguiu vivenciar tudo aquilo que se transformou na sua obra literária, uma verdadeira obra de arte. Mais uma prova de que a gastronomia realmente é muito mais importante e poderosa do que imaginamos. É “feijão sem bicho”.

 

(Para ver e ouvir esse causo do Manuelzão, basta pesquisar na internet o vídeo “Manuelzão e Bananeira”)

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