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Galopé com baralho

16 de Fevereiro de 2016, por Cláudio Ruas

Se alguém chegou a procurar essa coluna na última edição do jornal, certamente não a encontrou. O colunista, depois de cinquenta e três artigos ininterruptos, resolveu tirar férias e dar sossego a ele e a seus leitores. Férias para mim sempre foi, desde criança, sinônimo de roça. Ou melhor, de poder estar muitos dias na roça. Seja na fazenda dos bisavós em Moeda ou na roça resende-costense. Só mesmo um número maior de dias para aproveitar de verdade e poder entrar na rotina desse outro mundo tão especial que a vida “moderna” nos vem tirando. E neste mundo de que tanto gosto, tive a oportunidade de comer o melhor galopé de todos os tempos.

Numa segundona boa de dezembro, beira de Natal, depois de dar o banho na cria, virei o morro e “apiei” na venda do Roberto, no povoado dos Pinto. Lugar que tenho o prazer de frequentar desde criança, quando salivava na frente do balcão de doces. O balcão continua o mesmo, mas hoje a saliva vem é para o copo e para a prosa boa, como a do próprio dono. Segunda feira costuma ser um dia morto para todo lado, mas na venda do Roberto, não. A começar pela comitiva do folclórico “frango do Baú” - da qual faço parte eventualmente - que há anos enche os embornais de cerveja na venda, sempre abrindo uma ou outra antes de seguir viagem. E de uns tempos para cá uma turma boa engrenou de vez uma jogatina de baralho toda segunda. Ou melhor, baraio. Jacaré, Lourenço, Amarildo, Hamilton, João do Quincas, Ananias, entre outros, são figuras garantidas do carteado, que tem até uma outra mesa, a da “segunda divisão”. Não poderia esquecer da presença do saudoso Adélio, que agora deve ficar espiando as cartas dos demais sem que eles vejam.

Como baralho vazio não para em pé, também não falta uma boia boa na ocasião. E existe até uma escala organizada determinando qual jogador vai ser o responsável pelo papá a cada semana. Nessa minha última ida, o encarregado do dia era o “Marquinho Cozinheiro”, que quando está de férias sempre aparece. Nem sei se o chamam assim, mas eu chamo. E o faço como sinal de admiração e respeito, afinal, o “caboco” é cozinheiro profissional na capital há muitos anos. E não é um cozinheiro qualquer não. É daqueles que fazem comida para duas mil pessoas, naqueles panelões enormes do tamanho de caixa d’água. Tarefa dificílima, que requer talento, braço e muita responsabilidade. Já pensou se der algo errado?

Logo que cheguei na venda, meu amigo Guilherme Cascão desgrudou o copo da boca e cuidou de me dar a notícia: “Hoje vai ter um galopé. O Marquinho mexeu com ele o dia todo lá na roça”. Que notícia! Se galopé já costuma ser algo dos deuses, nas mãos do Marquinho Cozinheiro, então, aí minha boca virou um brejo. Ah, não custa lembrar que galopé (que o corretor ortográfico do computador insiste em tirar o acento), é um prato tradicional mineiro, que nada mais é do que um ensopado de galo com pé de porco.

Quem inventou essa mistura deveria ser agraciado com a Medalha da Inconfidência. Inicialmente aproveitou uma carne, digamos, perdida, pois um galo velho geralmente não come, nem é comido. A carne é dura e requer horas e horas de cozimento. Além disso, não rende muito, pois normalmente não se mata mais de um galo de uma vez. Aí veio o pé de porco para ajudar na empreitada. Não só para dar volume (a baixo custo), mas, principalmente, para dar mais corpo e alma ao caldo. É uma parte do porco que tem um sabor único, haja vista a quantidade de colágeno que possui. Como o próprio nome diz, ele é uma espécie de cola que existe para grudar a carne no osso. Ao contrário do que muitos pensam, colágeno não é gordura. Faz um baita bem para a saúde e ajuda a encorpar o caldo e transportar os sabores até nossas papilas gustativas. Gruda na boca e “obriga” os sabores de todo prato a ficarem lá por mais tempo, aumentando a sensação de prazer. Por isso as carnes de ossos costumam ser as mais saborosas, como a costelinha e a suã.

 

Já comi ótimos galopés, mas esse preparado pelo Marquinho Cozinheiro foi o melhor. Disparado. E digo isso mesmo se o provasse fora daquela atmosfera especial de venda de roça, com boas prosas e pingas, o que ajuda bastante no resultado final. Esse prato foi daqueles de pregar os beiços, para sempre.

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