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Tropeiro

14 de Novembro de 2017, por Cláudio Ruas

Quando uma receita pega emprestado o nome de uma profissão ou atividade, é sinal de que existe algo de especial por detrás dela. Uma receita de um prato vai muito além de uma mistura de ingredientes e aplicação de técnicas. Normalmente elas nascem involuntariamente a partir de uma ocasião, o que acontecia muito nos tempos passados. É o caso do nosso “feijão de tropeiro”, prato ícone da gastronomia mineira, surgido a partir das circunstâncias e necessidades daquela atividade, quando o tropeirismo movimentava nosso estado e nosso país.

Se viajar já costuma ser cansativo, até de avião, imagina então no lombo de um burro, por dias, meses, rompendo caminhos perigosos e desgastantes, lidando com as intempéries da natureza e com coice de mula. Era preciso muita energia, bucho cheio. Mas também era necessário carregar a cozinha inteira nas costas, sem que os alimentos estragassem, sem sujar muita vasilha e também sem perder muito tempo no preparo. Não dava para querer almoçar uma lasanha com salada de folhas e maionese de batatas. Tinha que ser algo forte e prático. Tinha que usar o toucinho curado, a farinha e o feijão. Preparados na panela de ferro, que não quebrava no sacolejo da cangalha nem na (des)arrumação constante das tralhas. E não é que deu certo?

Originalmente a receita do feijão tropeiro era mais simplificada do que hoje em dia, se limitando à mistura da base feijão-toucinho-farinha. Até porque os tropeiros não tinham à mão, por exemplo, os ovos e a couve. Ingredientes que se incorporaram ao preparo posteriormente, quando a cozinha mineira passou para outra fase, a chamada “cozinha de fazenda”, mais molhada e requintada que sua antecessora, a “cozinha de tropeiro”. Como define muito bem Dona Lucinha, grande baluarte da gastronomia mineira, em seu importantíssimo e delicioso livro “A História da Cozinha Mineira”, a cozinha de fazenda surgiu a partir da verdadeira povoação do interior do estado. O que ocorreu a partir do declínio da exploração do ouro, quando surgiu a necessidade (e oportunidade) de se dedicar às atividades de produção de alimentos. Tempos em que se morria de fome com as canastras cheias de ouro. Além de novos ingredientes à disposição, vieram também novas técnicas do velho mundo, como a de produção de queijos, destilados, embutidos, doces e quitandas.

Mas mesmo com as mudanças naturais dos nossos hábitos de consumo, a cozinha de tropeiro permaneceu firme e forte na gastronomia mineira, em especial o feijão tropeiro, que de tão íntimo passou a ser chamado só de tropeiro mesmo. E em alguns casos o amor é tanto que ele é chamado até de “tropeirinho”! Adorado por todos, do mais rico ao mais pobre, funciona como prato único, acompanhamento ou até tira-gosto - perfeito para se comer “de capitão”! Por muitos anos foi a única comida de verdade servida em estádio de futebol no Brasil, sendo no passado uma das grandes atrações do Mineirão (até a Copa do Mundo de 2014 azedar a tradição).

De baixo custo e capaz de oferecer muita sustança, seu preparo não guarda muitos segredos, embora alguns detalhes sejam de suma importância, principalmente o ponto de cozimento do feijão. Se cozinhar demais, já era, vira tutu. Por isso é interessante acompanhar de perto o cozimento, se possível em panela comum, sem pressão, deixando o grão de molho na noite anterior para cozinhar mais fácil e eliminar o tal do fitato, provocador de gases. Usar variedades de feijão mais apropriadas, que se mantém mais firmes, também ajuda. Caso do feijão vermelho, do rapé e dos feijões catadores.

Sempre guardei muita admiração pelos tropeiros de antigamente e pelo tropeirismo.

 Visitei com muito gosto o Museu do Tropeiro, no bucólico distrito de Ipoema, e me deliciei com a série de reportagens especiais do Globo Rural uns anos atrás, que rendeu três ótimos dvd’s sobre o assunto, numa incrível travessia na rota tropeira que vinha do Rio Grande do Sul (criatório de muares), até Sorocaba, em São Paulo. Os tropeiros, além de verdadeiros heróis do Brasil, foram grandes cozinheiros. E foram capazes de criar um prato tão delicioso e rico que alimenta até a nossa história.

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