Voltar a todos os posts

A assombração do cor’go da Sá Bilica – Parte 02

14 de Maio de 2015, por Evaldo Balbino

Um alvoroço tomou conta de todos. Era molecada para todo lado. Alguns subiam pelos barrancos, outros mais subiam cor’go acima, nadando contra a corrente. Já outros, entre medo e coragem, jogavam pedra na estranha mulher, que mais bufava com a inimiga reação.

Como manada fugindo de um predador, toda a gurizada reuniu-se naquela correria, bem no depois da mina, na estrada que dava na casa da tia Fiinha. Mas para a casa da Fiinha ninguém iria, porque ela também estava no mutirão, do lado oposto, mais acima da casa da tia Tuquinha. O jeito era correr e dar às pernas o que lhes era de direito e de dever.

A meninada ia correndo, e mais atrás seguia a mulher com seus passos largos, com seu cachimbo soltando fumaça, com sua boca gemendo forte, com sua foice reluzindo sobre o ombro.

No meio do caminho tinha um homem. Era o Antônio Massá, também com sua foice. Ele vinha de algum roçado, dum trabalho sério e respeitoso. Não era homem à toa, a ponto de dar-se ao absurdo de assombrar meninas e meninos angelicais, moços e moças que queriam apenas divertir-se um pouco num dia de calor à beça.

Ouvindo os gritos de todo mundo, Seu Antônio Massá indagou o que acontecia. A meninada passou por ele como passa o vento pela folhagem. Passou sem parar, mas dizendo que a assombração do cor’go da Bilica vinha vindo logo atrás.

Os ouvidos do homem se aguçaram. Ele não parecia daqueles que acreditam nessas coisas. Seus ouvidos e olhos ficaram mais atentos para o além da poeira que os pés dos garotos tinham levantado. Da brancura do pó levantado do chão, saiu mesmo um ser estranho, braços negros, cachimbo na boca e com botas desengonçadas. Aquele ser não andava. Arrastava-se pelo chão, respirando de modo sôfrego no meio da poeirada.

Não fosse aquele pano amarrado na cara, Seu Antônio Massá até aceitaria aquele corpo estranho passar por ele sem mais nem menos. Afinal, era um corpo que levava também uma foice ao ombro, sinal de que era alguém que também trabalhava. Porém os ceifados da vida são vários. E sabe lá Deus que loucura era aquela, uma pessoa assim estranha, de arma poderosíssima ao ombro! Porque era uma pessoa sim. Massá não acreditava – ou dizia não acreditar – em seres do outro mundo.

Não deixaria a mulher passar. Não a deixaria continuar a perseguição. Ele seria o salvador dos meninos. A garotada lhe seria grata por tamanha coragem e bondade.

Antônio Massá estancou seu corpo no meio do caminho. Relanceou sua foice no ar, esbravejando contra a mulher meio homem que vinha na sua direção:

“Seu moço, mostra a sua cara, seu moço! Se aprochegue e mostra a sua cara!”.

Ia gritando isso, repetidamente, enquanto sua foice ameaçava ceifar.

A estranha mulher parou. Não se sabe se com medo ou se matutando diabruras contra o homem que se interpunha entre ela e suas vítimas. Ficou parada, enquanto Antônio Massá gritava.

Como ela não se decidia, Massá foi na sua direção, gritando “mostra a sua cara, seu moço!”, mas ela nada. Como pedra no caminho, aquela assombração não arredava seus pés do lugar. A meninada gritava mais lá para cima, e Massá ia pelejando com a diaba. Quando chegou mais perto dela, a foice alçada para o ar, escutou-se um cicio, um sussurrar por detrás daquele pano no rosto, que mais parecia um assovio em segredo. O homem parou, por um momento. Jogou sua foice no chão e deu um berro, um berro altíssimo e dolorido. Diante do seu grito, a mulher riu escandalosamente, gingou o corpo numa dança estranha, contornou o corpo do Massá, que ficou abobado, sem nenhuma reação.

O que ela teria dito a ele? Seria algum segredo do roçador, algo que nem se pode dizer e muito menos se ouvir? Assombrações sabem de tudo. E mesmo se aquela mulher não fosse uma aparição, dalguma coisa ela sabia. Ou então era um monstro de verdade e, mais próxima do homem, assustara-o como se assusta a uma criança indefesa.

 

Com a guinada da mulher em torno do Seu Massá, a gritaria de todos aumentou. A assombração não queria nada com aquele homem. Sua sede era de sangue jovem, sangue de meninos e meninas levados, de moços e moças que, ao invés de terem ficado no mutirão ajudando os pais, estavam no cor’go, esbanjando preguiça e ingratidão. A correria ganhou mais força. A mulher vinha vindo com sua foice no ombro, com sua bota de sete-léguas andando desengonçado, no entanto como relâmpago.

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário