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A assombração do cor’go da Sá Bilica – Parte final

17 de Junho de 2015, por Evaldo Balbino

Jogavam pedras na mulher. Esterco seco pela estrada, cascalho das ribanceiras, frutos caídos de árvores. Tudo era arma contra aquela fantasma tão real. E nada adiantava. Ela vinha bufando sobre todos, como bufa a morte inevitavelmente. Na correria desatada entre as árvores da estrada, todos avançaram rapidamente e perderam de vista a mulher horrenda que vinha mais atrás deles.

No terreiro lá de casa, os adultos trabalhavam, como se nada terrível estivesse acontecendo. Viram todos nós suados, correndo, pálidos, alguns com o short molhado de urina por tanto medo, mas isso não se percebia, porque estávamos todos molhados pela água do cor’go. Aos nossos gritos e acenos, com avisos de que estávamos sendo perseguidos por uma assombração que vinha atrás de nós, todos riram e zombaram de nós, dizendo que tudo era benfeito, porque nós deveríamos é estar ajudando no trabalho e não vagabundando à luz do dia. A meninada tentou mostrar-lhes a assombração, porém ninguém excepcional vinha vindo mais lá atrás, a não ser um dos nossos coleguinhas, retardatário e chorando com o seu medo enorme.

Vendo o medo estampado nos olhos de todos e a incredulidade dos adultos, decidi caçar meu rumo, o esconderijo que eu tinha para enfrentar a vida. Desde pequeno eu já via essa necessidade. Fui para cima da nossa casa e me alojei entre o telhado e os estrados de bambu, os forros que nos protegiam de vento e noite. Ali, encolhido, fiquei matutando por que na vida tudo é tão perigoso, tudo pode acontecer à revelia de nós a qualquer momento. Fiquei ali quieto, esperando que a assombração, onde estivesse, se acalmasse e não mais desejasse sangue de menino tão pequeno como eu era.

Na minha quietude, porém, escutei um ruído sussurrado vindo do quarto-de-dentro dos meus pais. O quarto-de-dentro era onde dormiam minhas irmãs, as solteiras. Naqueles tempos as moças, mesmo namoradeiras e casadoiras, tinham de dormir sob a vigilância dos pais. Assim, qualquer pessoa, para acessar o quarto das moças, tinha de passar pelo quarto dos progenitores. Apesar do cuidado dos pais, havia janelas no quarto, caminhos abertos para a noite e para a vida. Janelas abertas para o mundo.

Era lá do quarto-de-dentro, portanto, que vinha o barulho. Um tocar em objetos e móveis, um ruído de mãos e tecidos, um baque de dedos namorando água ruidosa.

Decidi me guiar até o estrado sobre o cômodo. Rastejei meu pequeno corpo como se fosse uma lagartixa atenta, dessas que se levam por paredes entre frestas e cantos à procura de moscas para alimento. Mas ali eu não buscava comida, e sim alívio para o medo que sentia. Queria ver o que me dava calafrios. Como alguém poderia estar no quarto-de-dentro, se todos, homens e mulheres, não estavam na casa, mas sim no terreiro labutando com palhas e grãos de feijão? E se o alimento ali fosse eu, não a mosca vitimada pela lagartixa branca e pegajosa, mas sim o menino medroso atacado por uma assombração com sua foice reluzindo no ar? O meu medo era tamanho, mas minha vontade não sei de quê, de chegar quem sabe ao desmedo, era maior ainda. O meu medo não sumiria assim de todo. Mas pelo menos ficaria mais brando, mais acostumado com os sustos que a vida nos prega.

Escondido sobre o forro, olhei por entre as frestas do estrado. E vi, juro que vi, do lado da cama de minhas irmãs, a temível foice da assombração. E ao lado da foice, numa bacia de alumínio bem grande, vi aquela mulher de corpo esquálido e terrível se banhando.

 

Agora sem a bota de sete-léguas, sem nenhum pano na cabeça escondendo-lhe a identidade macabra, seu rosto era negro como todo o corpo. E ela se banhava e ria. E da negritude banhando-se na água da bacia, emergia um corpo branco. Da brancura trêmula da minha infância.

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