Jogavam pedras na mulher. Esterco seco pela estrada, cascalho das ribanceiras, frutos caídos de árvores. Tudo era arma contra aquela fantasma tão real. E nada adiantava. Ela vinha bufando sobre todos, como bufa a morte inevitavelmente. Na correria desatada entre as árvores da estrada, todos avançaram rapidamente e perderam de vista a mulher horrenda que vinha mais atrás deles.
No terreiro lá de casa, os adultos trabalhavam, como se nada terrível estivesse acontecendo. Viram todos nós suados, correndo, pálidos, alguns com o short molhado de urina por tanto medo, mas isso não se percebia, porque estávamos todos molhados pela água do cor’go. Aos nossos gritos e acenos, com avisos de que estávamos sendo perseguidos por uma assombração que vinha atrás de nós, todos riram e zombaram de nós, dizendo que tudo era benfeito, porque nós deveríamos é estar ajudando no trabalho e não vagabundando à luz do dia. A meninada tentou mostrar-lhes a assombração, porém ninguém excepcional vinha vindo mais lá atrás, a não ser um dos nossos coleguinhas, retardatário e chorando com o seu medo enorme.
Vendo o medo estampado nos olhos de todos e a incredulidade dos adultos, decidi caçar meu rumo, o esconderijo que eu tinha para enfrentar a vida. Desde pequeno eu já via essa necessidade. Fui para cima da nossa casa e me alojei entre o telhado e os estrados de bambu, os forros que nos protegiam de vento e noite. Ali, encolhido, fiquei matutando por que na vida tudo é tão perigoso, tudo pode acontecer à revelia de nós a qualquer momento. Fiquei ali quieto, esperando que a assombração, onde estivesse, se acalmasse e não mais desejasse sangue de menino tão pequeno como eu era.
Na minha quietude, porém, escutei um ruído sussurrado vindo do quarto-de-dentro dos meus pais. O quarto-de-dentro era onde dormiam minhas irmãs, as solteiras. Naqueles tempos as moças, mesmo namoradeiras e casadoiras, tinham de dormir sob a vigilância dos pais. Assim, qualquer pessoa, para acessar o quarto das moças, tinha de passar pelo quarto dos progenitores. Apesar do cuidado dos pais, havia janelas no quarto, caminhos abertos para a noite e para a vida. Janelas abertas para o mundo.
Era lá do quarto-de-dentro, portanto, que vinha o barulho. Um tocar em objetos e móveis, um ruído de mãos e tecidos, um baque de dedos namorando água ruidosa.
Decidi me guiar até o estrado sobre o cômodo. Rastejei meu pequeno corpo como se fosse uma lagartixa atenta, dessas que se levam por paredes entre frestas e cantos à procura de moscas para alimento. Mas ali eu não buscava comida, e sim alívio para o medo que sentia. Queria ver o que me dava calafrios. Como alguém poderia estar no quarto-de-dentro, se todos, homens e mulheres, não estavam na casa, mas sim no terreiro labutando com palhas e grãos de feijão? E se o alimento ali fosse eu, não a mosca vitimada pela lagartixa branca e pegajosa, mas sim o menino medroso atacado por uma assombração com sua foice reluzindo no ar? O meu medo era tamanho, mas minha vontade não sei de quê, de chegar quem sabe ao desmedo, era maior ainda. O meu medo não sumiria assim de todo. Mas pelo menos ficaria mais brando, mais acostumado com os sustos que a vida nos prega.
Escondido sobre o forro, olhei por entre as frestas do estrado. E vi, juro que vi, do lado da cama de minhas irmãs, a temível foice da assombração. E ao lado da foice, numa bacia de alumínio bem grande, vi aquela mulher de corpo esquálido e terrível se banhando.
Agora sem a bota de sete-léguas, sem nenhum pano na cabeça escondendo-lhe a identidade macabra, seu rosto era negro como todo o corpo. E ela se banhava e ria. E da negritude banhando-se na água da bacia, emergia um corpo branco. Da brancura trêmula da minha infância.