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A crítica contemplação

17 de Setembro de 2014, por Evaldo Balbino

Depois de ter lido minha crônica “Nós e os folhetins”, publicada nesta coluna em novembro de 2012, um amigo, o André Eustáquio, mandou-me comentários em tom de cumprimento. E neles ele me dizia que também assistia a novelas já havia bastante tempo e que estava numa fase de escolha das melhores. Disse também que não tinha muita paciência para acompanhá-las desde o início; que às vezes até o fazia, como em Gabriela, que terminara havia pouco. Defendeu que devemos, de fato, criticar a hipocrisia radical, fundada entre alguns intelectuais, segundo a qual a Rede Globo não presta e é absurdo assistir a novelas. Mesmo reconhecendo que, na televisão brasileira, há muito preconceito infundado, hipocrisia e bobagem mesmo, ele afirmou existirem muitas programações, além de jornalismo, no campo da arte e do entretenimento, que nos edificam. E foi argumentando que necessitamos da arte, do lúdico e da estética, como seres contemplativos que somos. E citou grandes atores, como Ney Latorraca, Antônio Fagundes, Glória Pires e Fernanda Montenegro. Atores que estão nos palcos do teatro e nas telenovelas. “Será que se tornam atores menores quando trocam o teatro pela TV?” – perguntou o meu amigo, e foi ele mesmo respondendo que acreditava que não. “Existem músicas boas e ruins, peças teatrais boas e ruins, óperas boas e ruins e também novelas. O importante é termos opções e, principalmente, discernimento para escolher o que mais nos agrada e edifica”.

Devemos sim criticar a referida hipocrisia radical. Hipocrisia, digo, porque muitos criticam o gosto da maioria e não admitem que, em alguns momentos, também “degustam” alguns programas da tela e até mesmo da referida rede tão difamada.

Se juntamente com a hipocrisia há muito preconceito infundado, também há bobagens o tempo todo na tela de uma TV. Fala-se mal o tempo todo da televisão brasileira e se faz isso na perspectiva de que no Brasil tudo é ruim, nada presta. Ora, muitas vezes nos faltam parâmetros para fazer tal julgamento. Lembro-me de quando morei em Madri, quando pude verificar que a televisão aberta na Espanha oferece basicamente o que eles chamam por lá de basura, ou seja, de lixo. Nas manhãs, tardes e noites frias espanholas, o que eu via na TV eram programas de fofoca, de bate-boca, de baixaria, de reality shows de nos fazerem sentir náuseas. No Brasil é diferente? Não. Mas temos aqui canais televisivos abertos com programas que valem a pena, que nos edificam. Tanto aqui quanto na Espanha, é claro.

Não tomo o verbo “edificar” apenas no sentido de “conduzir ou ser conduzido à virtude, pelo exemplo ou pela palavra”. Principalmente quando se fala de arte, e aí me refiro a uma telenovela como, por exemplo, Gabriela. Já ouvi muitas pessoas gabaritadas, numa preocupação feminista, abominando o machismo predominante na obra de Jorge Amado, na medida em que o escritor contribui para o fetichismo do corpo feminino. Isso nos demonstra que, em termos de arte, o que é e o que não é virtude, o que é e o que não é exemplo, são na verdade demarcações de difícil mensura. Ética e estética não caminham necessariamente juntas, infelizmente. Podemos ler um texto excelente do ponto de vista artístico, e que, no entanto, apresenta sérios preconceitos como o racismo. A obra de Monteiro Lobato, em alguns pontos, fica aqui de exemplo. Há racismo na obra de Lobato? Há. Mas isso não diminui a grandeza de seus escritos. Cabe a todos nós lermos criticamente. E, é lógico, se o que guia a minha leitura for um critério apenas ético, terei que abominar certas obras.

O que me edifica, então, é o que me ajuda a construir-me como sujeito crítico. Assim como se edifica uma construção, também nós somos construídos e nos construímos. Desse modo, por exemplo, podemos reconhecer numa boa telenovela o que há de ruim em termos éticos, mas também o que há de bom em termos estéticos.

Falar de arte é falar de contemplação. Contemplar é fixar o olhar em (alguém, algo ou si mesmo), com encantamento, com admiração; é observar atentamente, analisar, levar em consideração, aprofundar-se em reflexões, meditar, fazer suposições sobre, imaginar; enfim, contemplar é olhar com minúcia, é namorar, é estar enamorado. E quando namoramos a arte, não devemos, apaixonados, nos entregar completamente.

Grandes atores estão na televisão. E os que realmente são grandes dão perfeitamente conta de um palco de teatro, onde o improviso e o estar diante de um público e ao vivo são fatores que de fato colocam à prova qualquer talento na arte da interpretação.

Tudo na vida é uma questão de garimpos, onde trigo e joio convivem e muitas vezes se imiscuem. E nós com a necessidade de separar um do outro, como se isso fosse sempre possível. Se nossa construção se fizer valer, se formos nos tornando cada vez mais críticos, aí sim poderemos fazer garimpagem sem radicalismos, fazer explorações com mais desenvolturas, e poderemos abrir mão de posturas previamente estabelecidas e infundadas.

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