Voltar a todos os posts

A vida é um guarda-chuva aberto

17 de Dezembro de 2015, por Evaldo Balbino

A briga com a irmã era rotineira. Sempre um motivo qualquer, por mais simples que fosse, desencadeava os desconcertos. Ele foi se dirigindo até ela, porque aquilo não poderia ficar como estava. A atrevida tinha passado por ele, espevitada, e dera um beliscão em seu braço. Um beliscão fininho, desses que fazem doer até mesmo a alma. Dera o beliscão e correra para debaixo da saia da mãe. Não, aquilo não poderia ficar barato mesmo.

Chegou-se a ela, ameaçando também um beliscão. Ou um chute, que este haveria de doer na canela da infame. A mãe, entretanto, não se dando conta do contexto bélico dos irmãos, houve por bem proteger a menina terrível. Ou então a progenitora tinha visto todo o ocorrido e resolvera apaziguar a guerra. No exato momento em que ele se aproximava, a mãe, brava, armou a mão para dar uma palmada no filho, para afastá-lo da beligerante tentativa de couro na irmã.

Com medo das mãos da mãe, ele se afastou num repente. Afastou-se, porque as mãos que amam também machucam.

Afastando-se para trás, sem olhar para onde ia seu corpo pequeno, acabou por bater um dos calcanhares numa bacia de água quente posta ao lado do banco de madeira.

Por que estava ali aquela bacia? E justamente com água quente? O irmão mais velho, tendo chegado da roça, a tinha colocado ali. Tomara banho na cachoeira, ao lado da lavra. Mas agora os pés estavam sujos, pela longa caminhada de volta para casa, e tinha de lavá-los. Mas por que não colocar primeiro água fria para só depois temperar com água quente? Não era assim que a mãe sempre ensinava, que as irmãs solícitas e sabidas exigiam? Mas regras foram feitas, parece, para não ser cumpridas. E o irmão mais velho se esquecera de que todo cuidado é pouco em casa onde há crianças, idosos, cães e gatos.

O menino caiu de chofre sentado na água quente. E o seu choro levantou-se pela casa. O alvoroço na cozinha foi imenso. A mãe ficou petrificada. O pai veio correndo do terreiro, mas as pernas trementes ficaram de repente paralisadas. O irmão mais velho e os demais irmãos começaram a gritar, de susto, de terror. Somente a tia Lúcia, mais forte que todos, foi capaz de fazer alguma coisa. Levantou-se do banco de madeira e pegou o sobrinho num solavanco. Ele chorando, gritando, e ela foi-lhe descendo o short, sem medo nenhum.

A peça de roupa foi saindo, ensopada. E com ela foi saindo uma pele fininha, destruída pela água quente. Como se não estivesse se incomodando com a dor do sobrinho, a tia foi fazendo tudo com decisão, sem hesitações que nada resolveriam. No seu gesto seguro, aparentemente frio e rude, residia, no entanto, muito amor. Amar com rudezas é possível. Isso é amar com pisadas fortes, com pulso firme, sabendo que a dor do momento é inevitável e que essa dor deve ser atravessada de cabeça erguida para se chegar são e salvo na calmaria do outro lado.

Depois, na cama, o menino não queria consolo. Passaram-lhe clara de ovo no bumbum e lhe deram beijos mais fartos. A mãe até fez no forno, iglu levantado com tijolo, biscoitos em forma de bonecos – e isso para acalentar a dor do filho. E ele resmungão, aproveitando a agonia sentida para usufruir da explícita e cuidadosa proximidade da família.

Na manhã do dia seguinte, o irmão mais velho decidiu-se amoroso. Pegou o carrinho de mão do pai, forrou o fundo do carrinho com manta limpa e macia e colocou ali, deitado de banda, o irmãozinho convalescente. Depois abriu sobre o maninho uma sombrinha grande da mãe e o levou até a venda do Tino, lá no Ribeirão de Cima. Levou-o para comprarem pirulitos guarda-chuva.

O garoto aceitou feliz e com cara triste. Afinal, estava melhorando de uma queimadura e não podia esbanjar alegria, esnobar felicidade por ser tão bem cuidado. Tinha de dizer que doía, deixar-se abraçar pelos que tinham piedade dele. Até gemidos faziam parte de tudo. A queimadura doía mesmo. Mas, mesmo se não doesse, ele teria de fazer cara de choro, expressão e gesto de lamento. Entregou-se aos braços do irmão, segurou com vontade a sombrinha da mãe (protegendo-se do sol forte que fazia) e deixou-se conduzir, inválido, estrada acima. Iria para diante do balcão da venda, uma vitrine cheia de guloseimas e vida.

Na volta, o carrinho descendo seguro pelas mãos fortes do irmão, e o menino lambendo com vontade um pirulito. Ao seu lado, numa sacolinha de plástico transparente, vários outros pirulitos faziam fila para atender gula tão grande. Embalados em papel alumínio amarelo, num tom brilhante de dar felicidade, os guarda-chuvinhas estavam fechados, misturando-se amorosos e contentes por satisfazer o gosto de criança machucada. E um desejo maravilhoso de abri-los com gulosice, mas também com cuidado para que as pontinhas não se quebrassem. Nenhum pedacinho da guloseima poderia se perder.

O menino abriria as embalagens e sentiria o doce chocolate se ofertando à sua dor e à sua boca sobre o carrinho. Os guarda-chuvinhas seriam abertos, como a vida se abre amorosa e bela sobre nós. Viver é tão bom, o menino sentia. Viver é tão bom, apesar das coisas ásperas da vida.

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário