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As sereias do córrego da Sá Bilica – parte I

16 de Fevereiro de 2016, por Evaldo Balbino

O rei atirou
Sua filha ao mar
E disse às sereias:
— Ide-a lá buscar,
Que se a não trouxerdes
Virareis espuma
Das ondas do mar!

 

Foram as sereias...
Quem as viu voltar?...
Não voltaram nunca!
Viraram espuma
Das ondas do mar.

 

Manuel Bandeira

 

 

Para menino que ainda não lia palavras escritas, as vozes eram páginas a ser lidas. Não faltavam nunca as contações de história em rodas de crianças ou à beira da cama na hora de dormir. Geralmente eram os mais velhos que ficavam no centro das atenções de um grupo infantil. A infância permanecia ávida por fatos ou invenções transplantados para discursos cheios de vida. Contando-se histórias, viviam-se horas durando a fio, de uma alegria que não se mede de jeito nenhum.

A irmã mais velha era desses adultos que tinham lá suas narrativas especiais. A mais empolgante história que ela contava era a das irmãs trabalhadoras e das sereias que habitavam o córrego da Sá Bilica.

O terreiro de terra batida da casa era grande e com muita poeira. Os homens na roça estavam colhendo e secando as palhas de feijão, que logo seriam trazidas ao terreiro para ser batidas com vara cortada de pau d’óleo. As irmãs tinham de buscar alecrim-fêmea para fazer vassoura. E depois juntariam as touceiras na ponta dum cabo, amarrariam-nas com embira forte e começariam a limpar o quintal. Cada uma começando dum canto diferente, até se encontrarem no centro, com o monte de terra e ciscos a ser recolhido e jogado no valo, depois da pequena plantação de cana, bem lá atrás dos limoeiros. Assim, com o terreiro limpo, o feijão batido não ficaria tão sujo. Daria menos trabalho na hora de ser retirado das sacas e ser escolhido por mãos laboriosas à beira da pia e do fogão.

As irmãs eram três. Saíram no meio da manhã, com o sol ainda frio, preguiçoso. Decidiram, sem nada falar com a mãe, que subiriam pelo Quebra-panela, perto da casa da Teresa do Roberto.

Lá chegando, atravessaram a pinguela vergada sobre o córrego do moinho. Ao invés de continuarem na subida, decidiram descer pela ribanceira e caminhar pelas águas, os pés pisando água mansa e fria, os corpos passando rente às pedras escuras de lodo e tempo. Fizeram como Chapeuzinho Vermelho: seguiram rota outra, mais prazerosa, sem nenhuma preocupação.

Já no córrego da Bilica, mais lá para baixo, o desejo era de mergulho com roupa e tudo na pequena lagoa formada ao lado da grande pedra, debaixo de árvores, cipós e silêncio. Alguns ramos de cipó eram tranças traiçoeiras, cabelos descendo lodosos para debaixo das águas escuras e silentes. Só o barulho de água escorrendo, batendo em seixos que despontavam do leito do córrego, líquido resvalando seu corpo na dureza das pedras, alisando-as de modo contínuo e sedutor. E as pedras gostando daquilo, daquele roçar de águas femininas e deslizantes como serpentes.

 

A irmã mais velha, cheia de animação, se foi primeiro. Mergulhou com seu vestido de saco branco e rendas verdes nas bordas. A irmã do meio, um pouco hesitante, de blusa listrada e saia creme, também foi logo atrás. A mais nova, com medo sem conta, detentora de tranças longas e de tremores, ficou ao lado da pedra, esperando que as irmãs voltassem. Poucos minutos de espera, e elas não voltavam. A menina foi esperando, esperando, e nada. E então a dúvida: subiria a Passagem do Meio para catar as vassouras ou voltaria à sua casa para dizer do sumiço das irmãs? O medo das ausências fraternas falou mais alto. Ela retornou para pedir ajuda.

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