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Caso do vestidinho

16 de Julho de 2015, por Evaldo Balbino

Sua irmã pulava, menos ele. Nadador de areia, ele era. Quando se animava, com seu pequenino corpo deitado, batia seus braços e pernas naqueles trechos de água rasa, a areia castigando um pouco o rosto, o peito, a barriga de gula e infância. Nadando assim, desengonçadamente, acabava por ficar com o short cheio de areia, mas pelo menos nadava. Do seu jeito nadava.

Naquele dia o corgo da Bilica estava uma beleza. Ninguém na praiazinha estendendo-se. E por isso ele não ficou sobre a grande pedra. O medo de um fantasma aparecer lá em cima era tamanho. Melhor mesmo era debruçar-se sobre a areiazinha, nadar tal qual um marinheiro indômito, navegar com seu corpinho sedento de água e aventura.

As horas foram-se passando, e ele e sua irmã não tiveram tino do tempo. A areia das horas escorrendo, e ampulheta nenhuma avisando os guris que a noite já estava breve. A menina foi a primeira a perceber a proximidade do escuro.

– Vamo embora, Lino! Já tá ficano tarde!

Meio amuado com a situação, o garoto assentiu a contragosto, e foi logo tirando o shortinho para entregar à irmã. Como era de praxe, ela lavaria seu short na água corrente, tiraria dele toda a areia, esfregaria o pano com vontade (que para isso ela tinha jeito) e depois lhe devolveria a roupinha exígua para que ambos pudessem voltar para casa.

As mãos hábeis da irmã trabalhavam sobre a correnteza. Enquanto isso, Lino permanecia escondido atrás de uma pedra, pois meninas nem ninguém mais podiam ver o seu piu-piu. A mãe sempre ensinava e o pai com cara brava sempre advertia. As mãos da irmã fazendo um barulho gostoso. Um esfrega-esfrega de uma na outra, atritando a peça, tirando as manchas. Tivesse sabão ali, e as espumas brilhariam à luz do sol já quase se indo para trás das serras lá adiante. Lino olhava para o trabalho com enleio. Acocorado atrás da pedra, escondendo sua nudez como um Adão redivivo, ia vendo as mãos fraternas no favor necessário.

E a irmã ia jogando o shortinho dele para cima e o ia pegando novamente. E gritava com o irmão:

– Vê, Lino, como sou esperta! Vê!

E o menino xingando, e ela brincando com a cara de um pobre garoto desnudo. De repente, num descuido da irmã, o short de Lino caiu um pouco mais para longe e começou a descer a correnteza. A garota tentou salvar a bermudinha, mas não conseguiu. As águas fortes não deram trégua para menina tão frágil.

Começou a choradeira de Lino. Como voltaria agora para casa, de piu-piu balangando que nem ponteiro desengonçando de relógio? Não, de jeito nenhum! E aí ele se lembrou do relógio antigo, na casa da Bernardinha. Um relógio pomposo, mas carcomido pelo tempo, em cujo alto pousava um pássaro, frio e morto. A frente do relógio com um vidro transparente, e o pêndulo balangando de um lado para outro, sem parar, sem se cansar. O seu piu-piu não se cansaria também. Mas como andar pelado pela estrada? Como mostrar-se assim, sem roupa nenhuma, para quem pudesse passar por ele? Por certo os primos, filhos da tia Tuquinha, zoariam com sua cara. Não, de jeito nenhum mesmo! A irmã que desse um jeito!

Vendo-o emperrado e choroso atrás da pedra, a garotinha encontrou a solução:

– Tô de calcinha, Lino. Então ‘cê vai com meu vestido, tá? De calcinha num fico pelada não.

E o menino, receoso, enfiou sobre sua cabecinha o vestido da irmã. Desengonçadamente subiu ao lado dela para a mina. Nem olhou a água fria e gostosa da bica. Uma água descendo lenta, pouca e refrescante.

Mais acima, na estradinha que levava à sua casa, deram de encontrar com dois carreiros guiando duas juntas de bois e um carro-de-boi cantando de peso. Vendo o menino com vestido, os homens iniciaram gargalhadas terríveis. E aí sim o menino chorou, chorou alto, mais alto que a alta poeira que os bois levantavam com seus cascos.

Fugindo da poeira e das gargalhadas, a infância chorosa subiu a estrada estreita, perguntando-se por que tamanho desajuste, qual o problema de um menino vestir um vestido. O mundo tem disso. As coisas parecem ser dadas, e pronto. São naturais, e nada se pode fazer contra elas.

 

Então, com muita raiva, o menino, lá do alto da estrada, empinou o traseiro na direção dos boiadeiros, levantou o vestido em seu corpinho e mandou aqueles homens catarem cascalho diante dos bois.

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