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Cavas e estradas

19 de Novembro de 2015, por Evaldo Balbino

Os tratores a que chamávamos de patrolas escavavam novos caminhos. E as estradas estendiam-se mais rasas do que as cavas de antanho, mais dadas à luz do dia do que os antros de penumbra e assombrações.

As cavas eram antigas, e nós as amávamos como coisas terríveis e necessárias são amadas. Aqueles caminhos côncavos eram nossas únicas possibilidades. E ai dos meninos mandados sozinhos à venda do Tibúrcio lá no Ribeirão de Cima ou à venda do Nélson no Ribeirão de Baixo. Geralmente isso era mais de noite, hora do escuro em que vinha a lembrança de que as lamparinas estavam secas, sem querosene que alumiasse as trevas. E eram muitas as virgens loucas, as que se gabavam de esperar pelo esposo, mas que sempre estavam desguarnecidas sem o combustível para a luz. E quem pagava pelas loucuras desses adultos desatentos, virgens desmiolados, eram as crianças. Eram as crias que tinham de enfrentar a boca da noite para aluminar toda a família.

Quando a venda do Tibúrcio já não mais existia, abriu lá em cima, no topo do Ribeirão, a venda do Tino. E eu tinha medo de ficar grande como os meus irmãos, os que iam de noite buscar querosene para a família e rolo de fumo para nosso pai lá no Tino. Se me mandassem subir aquela cava funda e escura, eu morreria de terror. Logo ali, onde meu avô vira certa vez o Cavalo de Três Pernas e onde muitos diziam já ter visto a Luz da Pedra? Deus que me livrasse de tamanhas aparições!

Já as estradas do Ribeirão, as que iam sendo abertas pelas patrolas, essas sim renovavam nossas forças, davam-nos coragem nunca antes possuída. As estradas ficavam mais perto do céu, da proteção de Deus, da luz parca ou forte das estrelas e da Lua. Por elas passamos a andar com mais calma, com um medo mais suportável.

As estradas tinham, por outro lado, seus contratempos. Com o advento delas, também advieram denúncias daquelas vidas que, nas cavas, escondiam-se em práticas não aceitas pela comunidade do Ribeirão. Adultérios, fornicações as mais diversas, namoros escondidos à luz do dia – tudo isso era fato dentro das cavas, as que eram verdadeiros esconderijos para aqueles que não agiam de acordo com as normas. Com bordas altas, ribanceiras cheias de ramas e de ninhos de cocota, as cavas acobertavam aquelas vidas em desvio que prosseguiam seus rumos escondidos. As cavas eram senhoras alcoviteiras. Não faço aqui nenhum julgamento, mas antes reconheço nas senhoras cavas os refúgios a tornarem suportáveis e mais equilibradas as tensões da vida naquela época.

Mesmo denunciadoras, as estradas iam renovando as nossas vidas com novos caminhos, o cheiro de terra gostoso, as cavas virando passado entre matos e relva virgens. As estradas, mesmo fofoqueiras, eram amigas. Há pessoas assim, não há? Falam mais do que devem, ficam à janela olhando vidas e delas dando conta aos quatro ventos. São essas pessoas das quais se diz que, quando morrerem, terão dois caixões: um para o corpo e outro para a língua. No entanto são pessoas amorosas, coração derretido: muito falam, mas também muito amam. Assim eram as estradas, principalmente para os meninos, que passaram a fazer delas os caminhos mais suaves, menos aterrorizadores.

Eu mesmo cheguei a subir muitas vezes, entre o Ribeirão do Meio e o Ribeirão de Cima, a estrada ali construída. Adeus, cava dos meus temores! Adeus, subidas no escuro entre matos para comprar, na venda do Tino, sabão ou pirulitos guarda-chuva! É verdade que, mesmo na estrada, eu ia de olhos desconfiados, retinas meio viradas para o lado direito, o lado da cava. Sempre o medo de surgir dali uma fera. De cobra eu não tinha medo. Cobras não têm pernas e não correriam atrás de mim. Surgiria, também e talvez, um fantasma. Quem sabe o Cavalo de Três Pernas ainda não vivia ali e poderia, de repente, aparecer para mim como um dia aparecera ao meu avô? Meu corpo de menino ia para a venda, mas os olhos eram vigilantes, espertos. O seguro sempre morre de velho! Não é assim que se diz?!

Também, menino, eu fugia por essa estrada nas minhas traquinagens. Depois de uma bagunça bem-feita (que ninguém é de ferro, muito menos uma criança), meus pais ou irmãos começavam a fazer cara feia. Suas bocas crispadas gritando diante de tamanha peraltice, os braços gesticulando ferozes, as mãos agitadas ameaçando palmadas. Diante dessas pantomimas de adultos, corriqueiras e conhecidas, eu escapava com pernas ligeiras e felizes:

– Onde é que ocê vai, minino? Volta aqui, seu diabo!

– Vou pra bem longe, minha gente!

– Vai pra onde, oxente!

– Vou pra “Goropa”, uai!

 

Mal eu sabia que a Europa era tão longe das terras do interior mineiro. Ainda mais naquela época em que os meios de condução eram parcos e caros para todos nós. As estradas eram longas e iam para os longes, do mesmo modo profundo e extenso das cavas.

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