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Colchão de palha e palhas de feijão

13 de Agosto de 2015, por Evaldo Balbino

A mãe, torrando fubá no fogão a lenha, atravessava a noite com o manejo das mãos sobre a panela. Ora a mão direita, ora a esquerda, para não cansar tanto. E cada mão segurava firme a colher de pau enterrada no fubá, o cheiro gostoso daquela iguaria alastrando-se pela cozinha, pela casa, atravessando os estrados acima das paredes, cruzando a cumeeira um cheiro bom de vida, de fogão aceso lá dentro, de pessoas existindo.

E lá no terreiro Lino entre os primos, sentindo o aroma de fubá torrado, sua boca enchendo-se d’água, porque pela manhã teria opções: ou café com farinha, ou leite gordo (tirado da vaca no curral) com farinha, ou farinha com açúcar que também era uma gostosura. E a meninada toda, os seus irmãos, comendo farinha e falando com vontade, só para verem o fubá voando, saindo pelas bocas. Os meninos e as meninas sujando-se de fubá torrado e de vida. E se optasse pelo café com farinha, Lino colocaria muito fubá e pouco café. Faria uma paçoca, aquela massa parecendo de areia e tão macia. Um fubá torrado e amolecido pelo café gostoso da mãe.

Esses pensamentos de Lino não o afastavam da brincadeira com os primos. Brincar e pensar em comida eram uma coisa só.

As palhas de feijão, entulhadas num canto do terreiro, ainda estavam mais ou menos secas, já indo para murchas. Antes que o tempo das águas chegasse, o pai providenciaria a retirada das palhas dali. Não deixaria aquilo tudo apodrecer bem no canto do terreiro. “Sujeira traz bicho ruim”, dizia a mãe. E o pai primava pela organização de tudo, para que os filhos não adoentassem, pois nem enfermeiro havia no povoado. E o que se diria de um médico? Este é que não existia mesmo. Terreiro limpo, campo da faina lúdica de crianças, é sinal de saúde, de vida longa e regada com coisas boas. O pai e a mãe assim pensavam e mantinham a limpeza em tudo.

Antes, porém, de as águas chegarem, de as palhas de feijão batido apodrecerem, antes mesmo de essas palhas serem removidas, a garotada fazia a festa. E Lino e seus primos, alimentando-se do cheiro do fubá torrado e da energia de uma infância sem fim, iam cavando túneis nas palhas de feijão. Palhas que davam coceira pelo corpo, mas que revigoravam aquelas vidas e alimentavam aquelas meninices. O trabalho era prazeroso.

Sem eletricidade, luz artificial não fazia falta. A luz da lua e das estrelas sempre alumiava as grotas do Ribeirão de Santo Antônio. Em tempos de seca, o céu é limpo e se descortina mais ainda durante a noite, dando ao mundo a luz das alturas, o farol que faz as grotas parecerem sombras de outro mundo e que torna os terreiros brilhantes, pontos de claridade aqui e acolá em povoado de poucas casas.

E pela noite os trabalhos se embrenhavam. Como as mãos da mãe torrando o fubá noite adentro, as mãos afanosas das crianças iam se enraizando nas montanhas de palhas de feijão. Os túneis em progresso, a maquinaria da infância sem descanso. O cheiro gostoso da palha vindo da terra, misturando-se com o suor da labuta de crianças que já tinham tomado banho e que ainda insistiam em suar na tarefa de existir.

E depois de estarem prontos os túneis, cada um dos meninos e das meninas virava um trem de ferro. Eram máquinas da noite, marias-fumaça atravessando as montanhas de palhas de feijão. Era uma delícia entrar no escuro dos túneis, sentir-se ameaçado pelas laterais e pelo teto na iminência de um desabamento, e aí Lino pensava em mineradores soterrados, em trabalhadores sofrendo para respirar debaixo da terra. Nessas horas ele pensava até mesmo nos mortos sem ar nas sepulturas. Mas tristeza nenhuma tomava o garoto. Bom era tudo aquilo, como boa é a vida. Esta vida que temos e que por isso mesmo conhecemos antes de a morte nos abraçar.

Depois de idas e vindas pelos túneis sob montanhas, os moleques incansáveis eram chamados. A madrugada já quase cobrindo a noite, já quase lhe arrematando a existência escura, e os pais exigindo que os filhos fossem para a cama. Os primos iam embora, Lino reclamando de ter de descansar o corpo sem nenhum cansaço. Qual o problema de avançar a noite toda, de clarear o dia na lida entre as palhas de feijão?!

“De jeito nenhum!”, diziam os pais. “Já passou da hora de criança deitar”. E resmungando, sem tomar outro banho, Lino ia para sua cama, quase obediente.

 

E sobre o colchão de palha de milho, a modorra infantil estendia-se. A coceira no corpo não coibia a marcha do sono. O repouso assentava-se sobre a cama e prosseguia. O menino continuava brincando, não mais agora entre as palhas de feijão no terreiro, mas pelos túneis dos sonhos infindáveis desta vida.

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