Voltar a todos os posts

Dona Trindade

17 de Novembro de 2016, por Evaldo Balbino

Com nome tão poderoso, ela era dona do vasto pomar que margeava nossa rua e ia seguindo de modo comprido o lado oposto das casas. Para quem saía da cidade na direção do Ribeirão de Santo Antônio, o pomar ficava à direita, e todos nós, meninos com olhos gulosos em casas de famílias pobres, ficávamos à esquerda. Uma cerca de arame farpado e piteiras, que soltavam flores quando queriam enfeitar nosso logradouro, eram o limite entre as nossas bocas e aquelas árvores com abacates, bananas, jabuticabas, goiabas, araticuns e outras mais guloseimas que a natureza ofertava e que aquela senhora com nome prestigioso negava.

A rua, na verdade, era avenida. Descalça como um Francisco indo para além de Assis, coberta por uma terra vermelha que era barro em dias de chuva, se chamava Avenida Trinta e Um de Maio. Só bem depois passou a chamar-se Avenida Antônio da Silva Barbosa. Com todo respeito ao Seu Barbosa, eu preferia o nome anterior, gracioso, numa referência ao lindo mês de maio. Um nome que me lembrava a Virgem Mãe de Jesus, noivas ansiosas com seus vestidos de desejo, núpcias duradouras em noites amenas e trementes, encontros fortuitos no escuro gostoso da vida, amores sem mensura e sem peias. Mas mudaram o nome. Paciência!

Dona Trindade também não era rica, não. Não sei por que cargas d’água a mulher conseguira comprar aquela espécie de chácara. Talvez pela pecúnia de alguma herança, recebida lá na Bahia. Ela era baiana.

Não lembro exatamente o seu sotaque. Não sei se ainda havia algo nele da voz cantada dos baianos, das vogais abertas que dão à língua uma vontade de janela escancarada para o mundo. Talvez a mulher já se tivesse tornado mineira pelo poder dos anos. Sempre com um pito de palha na boca, uma fumaça forte saindo das narinas, nicotina forte advinda de fumos de rolo comprados nas vendas da vila. Seu lenço na cabeça era de um tecido grosso, como se fosse uma couraça a proteger os cabelos brancos, o crânio esconso, as orelhas atrevidas e escutadoras.

Sempre ia lá em casa conversar com minha mãe. Não era dada a amizades, mas houve por bem aproximar-se da minha genitora, encontrando nela – conforme dizia – alguém de confiança. Entre falas e pigarreios, seus dedos longos e finos iam descascando espigas de milho no paiol, amarfanhando as palhas e buscando as mais macias, as propícias para pitos dignos de uma boa fumadora.

Dizia que toda a gente não era de fidúcia, que só tinha na estima a minha mãe atenta aos seus dizeres e que, inclusive, quando morresse, iria voltar para continuar amizade tão séria e sincera. Minha mãe sorria de modo amigo e divertido, e lhe recontava sempre a parábola do Cristo sobre o rico fazendeiro e o pobre Lázaro cheio de chagas.

O mendigo com fome e pedindo migalhas de comida, o rico negando ao pobre a subsistência. Mortos os dois em noite de festa na casa do fazendeiro, cada um foi para um lado diferente. Lázaro foi habitar o seio de Deus, na companhia de pessoas famosas com nome e sangue azul entre os hebreus, como o patriarca Abraão. Já o fazendeiro, lá das profundezas da terra, nas chamas que ardem eternamente, viu nas altas nuvens o mendigo gozando companhias aprazíveis e paz sem par. O homem rico, então, pediu a Abraão que permitisse a Lázaro molhar o dedo na água e refrescar-lhe a língua. Pedido negado. No intuito de avisar os irmãos ricos, ainda vivos, sobre a necessidade de se despirem da soberba no intuito de que não seguissem o mesmo caminho que ele, suntuoso, seguiu, novamente solicitou que Abraão deixasse o mendigo voltar à Terra para dar testemunho de tudo. Solicitação recusada. Dizendo do abismo entre mortos e vivos e da já histórica presença de Moisés e demais profetas entre os homens, Abraão mostrou-se irredutível.

Dona Trindade ouvia a tudo isso, com olhos acesos, enquanto as mãos ou trabalhavam nas palhas ou se perdiam em gestos como levar o pito à boca e ainda apoiar as laterais da cintura, com a coluna já bastante vergada pelo peso da velhice.

Nessas conversas amistosas e catequéticas, creio que elas não percebiam uma coisa: o abismo dos mortos, a avenida esburacada e de terra vermelha, a cerca de arame farpado, as piteiras e suas flores misericordiosas – tudo isso não separava as duas. A chácara de Dona Trindade, que seria um luxo para a época e naquela periferia da cidadezinha, não era motivo de afastamento. As duas mulheres eram Lázaro, talvez sem o saber. Gozavam a vida com suas fomes e chagas, mas também com suas vontades de vida, com suas flores possíveis.

Por isso ainda vejo e ouço as duas amigas conversando sobre um lugar perfeito, como esta vida mesma é: uma antessala do seio de Deus.

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário