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Êxodo

14 de Outubro de 2016, por Evaldo Balbino

Palavra andarilha, esta. Bonita e triste. Aos meus olhos e ouvidos, ela sempre chegou insinuando-se, de modo impertinente, ataviada e terrível.

Como tenaz necessária, ela me veio quando eu ouvia na igreja falarem do Livro de Êxodo, da perambulação do povo hebreu pelo deserto. E diziam com bocas de fé e exaltação que aquilo tudo era livramento da escravidão no Egito, era libertação de um povo que, apesar das necessidades por terras áridas, foi acudido sempre por Deus. Coluna de fogo, maná e aves dos céus, água jorrada da pedra, sapatos nunca gastos, roupa durando quarenta anos, as falas de Deus aos seus escolhidos... E tudo isso junto com homens tentando andar sob leis, com mulheres e crianças mudando entre tendas sendo montadas e desmontadas, com animais sendo guiados a esmo pelos caminhos. Tudo isso uma falta. Uma falta de raízes dolorosa para mim.

Daí o meu olhar agudo para os ciganos. Para o modo como eles assentavam-se, sempre provisoriamente, em Resende Costa. Isso se dava lá no Cruzeiro, perto do grande barranco e do campo de futebol, na saída para o Ribeirão de Santo Antônio e para o Curralinho dos Paula. Eu passava por perto com medo, escondido entre moitas. Namorava suas panelas e apetrechos, com o receio de eles me confundirem com tudo aquilo, me considerarem também da posse deles e me levarem para bem longe, para onde impossíveis aos olhos protetores dos meus pais.

E nas aulas de Geografia e História, quando se discutia sobre o êxodo rural, sobre as migrações no nosso imenso país, eu sentia a desproteção de muitos compatriotas. Famílias inteiras iam saindo de seus lugares, dos seus recantos, buscando vida outra, talvez melhor, nem que fosse no sonho. Lembro, assim, que meus irmãos mais velhos fizeram o mesmo nos anos de 1980. Saíram de Resende Costa para São Paulo, naquela euforia da época. Jovens do Brasil imenso e interiorano iam para a metrópole afundar-se entre concreto armado, poluição, trânsito e sonhos de uma vida melhor. Lembro minha mãe ansiosa por cartas, que viajavam muito para chegar a seus destinos, trazendo notícias dos filhos distantes. As comunicações demoravam tanto, mas acho que eram de fato pontes entres as pessoas. Hoje, tudo tão rápido, tudo um flash, que não sei mais se estamos nos comunicando a contento pelos e-mails, pelos aplicativos e pelas redes sociais. As cartas demoravam, mas iam e vinham, falando dos esforços de meus irmãos na grande São Paulo. E lembro minha mãe chorando ao lê-las; e pegando decidida, logo após, a caneta e folhas de caderno para responder à prole. E não demorava para levar sua missiva à agência dos Correios. Eu mesmo, em meados dos anos 1990, troquei cartas com minha mãe. Isso quando computador era coisa para pouquíssimos. Ela em Resende Costa, eu em Belo Horizonte – e as cartas sendo aliança entre nós.

Lembro-me também, e não me esqueço jamais, de todos e de tudo lá em casa, no povoado do Ribeirão, nos ajuntando em mudança para a Vila. Lugar aonde eu já tinha ido algumas vezes e me deslumbrado com as luzes nos postes acesas. No Ribeirão era tudo escuro nas noites de lua escondida, a lua morando longe de nós. Na vila, os poucos postes de luz davam ao mundo um ar de falta de medo, de ofuscamento das tristezas, de fechamento dos caminhos da morte. No caminhão fomos todos, para mudar de vida: porcos, galinhas, gamelas, feijão, peneiras, móveis, pilão, bacias, moinho de café, penicos, debulhador de milho, filhos, filhas, enxovais, roupas, lamparinas, colchões, rolo de fumo, os cachorros Preto e Veludo... E regendo essa orquestra tão vária, segurando a batuta com ânimo, lá iam conosco também os nossos pais, os valentes Jesus (Seu Didi) e Laura. Os dois do mesmo modo eram músicos, e mestres, na banda da vida tão bela, na banda da vida tão nua, na banda da vida tão crua.

E a dança seguiu os seus passos, como a água leva detritos. A casa nova. A rua descalça. O barranco de lixo queimando-se, que dava acesso à nossa rua. As poucas e olheiras casas. As pessoas tomando fresca à noite e falando da vida alheia. Os casais de namorados e seus desejos quentes e irrefutáveis. A meninada brincando com os cachorros e gatos na rua, todos alegres e sendo uma coisa só, bonita de se ver. A vida dançando como se deve.

E como se deve, eu lembro. Sempre vejo tudo, mesmo que por fragmentos pescados aqui e ali. Recordo para não morrer. A cor do que lembro é dúbia, é cinza e vermelha. Não existem paraísos perdidos, que esses não grassam na vida, senão nos mitos que construímos. Mas na pesca que realizo, fisgo também momentos de paraíso. O passado existe e é forte. Olhando para ele, construo raízes para esta vida cigana, para esta vida passando.

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