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Morte nas Tabocas – Parte 02

11 de Marco de 2015, por Evaldo Balbino

Minhas mãos eram seguradas pelas mãos de minha mãe. Meus irmãos e irmãs conversavam coisas à toa, sobre escola e namoros. O pai seguira em sua seriedade meio alegre, pois ele não deixara de contar casos, de pigarrear, de balançar o corpo pequeno e forte para ajudar os mais novos a passar tranqueiras. E minha mãe, sem nenhum canto, mas indomável na insistência pela vida, criando sua prole e cuidando do marido. Nós todos na trilha para o sepultamento de uma amiga da família.

Na casa da Nhica agora, muitos murmúrios, vozes amiudadas pelo respeito necessário. No terreiro, muitas pessoas que tinham madrugado. Homens pitando seu pito de palha e o ar recendendo rapé. Um cheiro bom de café matinal atravessando tudo, bailando entre corpos e penetrando narinas cheias de vida e compaixão. O fôlego de Deus ainda estava ali, espalhado pelo terreiro. O Ruach Elohim, eu diria se fosse um hebreu, manifestava-se naqueles barros moventes e amantes deste mundo. Todos respeitando e cultuando a morte, mas desejando a vida. Todos falando, numa voz silenciosa, alternando fatos e invenções com goladas deleitosas de café forte para acordar defuntos.

Na sala da casa simples, de janelas de madeira abertas para o mundo, a Nhica dormia em seu caixão. Morrera pela madrugada, sem ar, num sufoco durante o sono. Era alta, eu me lembrava ao vê-la ali deitada. Era alta, e fumava muito, e bebia. Dava risadas altissonantes, sempre com um lenço amarrado na cabeça. Usava sempre calças compridas. Eu nunca a tinha visto de saia ou vestido. Sempre de calças, que lhe chegavam ao alto da cintura fina e que lhe deixavam à mostra pés sofridos, calcanhares rachados e sujos tentando apoiar-se em chinelas Havaianas encardidas. Ela andava muito. E a poeira das estradas do Ribeirão assentavam em seus pés como enfeite de andarilho.

Agora a Nhica não mais andaria. Estava deitada sob flores, cores várias. Apesar de tanta opção, as pessoas, naquele povoado e naquele tempo, não colocavam sobre os defuntos flores de uma só cor. Variavam as cores, como se estivessem querendo, com isso, dar mais alegria para as dores da vida. Numa mistura de vermelho, branco, amarelo e roxo (sem a preocupação de que os tons combinassem ou não), e também numa miscelânea de hierarquias, cravos, rosas, margaridas e flores do campo conviviam harmoniosamente sobre a morte.

Numa das janelas da sala, uma menina olhava para os longes do descampado, chupando o dedo como se este fosse um bico. Cabelo desgrenhado, pernas curtas acocoradas sobre o beiral da janela, seus olhos pequenos e úmidos buscavam não se sabia o quê. Era a caçula da Nhica. Agora órfã de mãe, a menina olhava para o dia de luz intensa e calor forte, como se não estivesse percebendo o fuzuê silencioso de pessoas no terreiro, entre café e pito, em torno da sua casa.

Tínhamos chegado já quase na hora do enterro. Mamãe arregaçou as mangas femininas de mulher da roça, moveu-se com desenvoltura entre as outras mulheres. Ajudou a servir café, cubu e outros biscoitos. Andava com bandeja e bule nas mãos, levando alimento para os que ainda viviam.

O caixão fechado, e alguém lembrou-se de chamar a órfã caçula, que ainda estava sobre o beiral da janela, chupando o dedo e olhando para o nada. Depois passaram com o corpo pelo Saco das Abóboras, avançaram para além do cemitério, desceram a estrada que levava aonde ficava a casa da Lilia do Inhô, subiram rente à casa de São Vicente, onde morava o Raimundo Mundo, e por fim entraram na capela cujo adro tinha uma cruz simples e triste. Mas o corpo da Nhica não ficou ali, entre anjos e santos suspensos. O silêncio que seu corpo habitaria seria o do cemitério, naquela colina erma em que decidiram cravar o campo-santo.

 

O corpo da Nhica fez todo esse percurso. E tudo num simples caixão. Roxo, como era prática na época. Caixão sem enfeite nenhum. Ao seu lado seguiram os filhos, tristes e já criados. Mas a caçula acompanhou em pranto, mesmo que tímido, a triste procissão. Acompanhou ao lado da mãe. E o seu pranto, tranquilo o tempo todo, desatou-se como água incontida no exato momento em que os terrões começaram a bater secamente sobre o roxo caixão.

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