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O tecelão se (nos) tecendo

13 de Agosto de 2014, por Evaldo Balbino

Meu aniversário é no dia 24 de maio, mês das noivas, do casamento. Acho que é por isso que escrevo tanto sobre amor, erotismo e Deus. Afinal tudo isso tem ares de eternidade, de algo perene, de união. Nascer em maio é desmaiar-se de amores, é ouvir rumores, cânticos de Maria, novenas de maio. Em maio eu desmaio sempre, de amor.

Deus é erótico. E nós, à sua imagem e semelhança, também o somos. Ele é tão erótico que deseja sempre nos desposar no deserto. E tem ciúmes de nós. Não aceita de jeito nenhum que busquemos outro que não ele. É exclusivista e passional. É amante possessivo. Aliás, todos os deuses são assim, proprietários. Não conheço um sequer, nas grandes religiões monoteístas e também nas politeístas, que não seja nem um pouco ciumento. Todo senhor, mesmo aceitando compartilhar seu servo com outros senhores, faz isso meio desgostoso. Por isso nos damos tão bem com ele, o nosso Deus. Numa relação tensa e agradável, nos sentimos também seus proprietários. No espelho de Narciso nos contemplamos, possuidor e possuídos, e nos misturamos. Nascemos para Deus porque almejamos a eternidade.

Também escrevo sobre a morte o tempo todo. Não há como não pensar nela. E ela, certamente, sempre está pensando em nós, amando-nos de soslaio com seus olhos escuros de um brilho sem luz. Ela fica nos espreitando e desejando nossos corpos. Quer-nos inteiros no seu seio de amante fácil, mesmo que atomizados na terra. Ela nos ama tanto que quer nos destruir e fazer com que sejamos simplesmente nada. Seu mais íntimo desejo é nos confundir consigo.

Falar de Deus e da morte é uma coisa só – é falar de amor. Um ato contínuo de contrição, um olhar pasmado sobre o que não entendemos. E não entender é tudo o que nos resta, com espasmos de espera e adoração. Não há teologia que nos salve com sua ciência, mas o sentir da fé nos consola, nos faz ovelhas tresmalhadas se reencontrando e se enroscando em apriscos terrenos.

Além de ter nascido em maio, nasci também na zona das Vertentes. Mas já me disseram que "zona" é uma palavra muito feia. Para mim, nenhuma palavra é feia. Inclusive adoro os execráveis “palavrões”! Os abomináveis e forçadamente exilados de nossa língua, mas que no seio dela mesmo existem. Matreiros, com olhos de gula e fome, os ditos palavrões acenam para mim, piscam os olhos, me seduzem. Podem me dizer “Região das Vertentes”, “Campo das vertentes”, e tudo sempre será a zona mesma da nossa vida e não outra.

Nesta zona nascemos, a da vida. Nela também crescemos e morremos. Neste mundo múltiplo e maravilhoso. E quando nos sentimos perdidos perante a reverberação dos estilhaços de tudo, basta pensarmos na beleza da existência. Na engrenagem que nos leva não sabemos para onde, mas que é puro movimento. É vida pura.

Sempre é difícil a gente se definir, como aparentemente estou tentando fazer nesta crônica. Aliás, qualquer definição é impraticável. Posso apenas dizer que sou um ser que tenta compreender a si mesmo e aos outros, que busca entender o mundo e tudo o que nele existe, a vida existente e suposta. E que tenta fazer isso através das palavras, do revolvimento delas. Por isso escrevo, por isso dispo o que quer que seja e me dispo. O mundo despido se nos entrega em plena nudez. E escrevendo eu vou lutando, sempre e cada vez mais.

É como se escrever fosse um modo de lutar contra a morte. E lutar contra a morte, neste caso, não é apenas sonhar com a eternidade, o que já é muito. Lutar contra a morte, escrevendo, é também lutar contra o silêncio do não entendimento, da planura vaga e vã. Escrever, então, é produzir rumores, é exorcizar ausências, para fugir da solidão e do silêncio. Escrever é fugir do nada.

E fugindo do nada, vou narrando vidas (a minha própria também), sempre reinventadas. Vou tecendo colchas de palavras, para com elas esconder-me do frio do esquecimento. Pois esquecer desaquece. E o calor da memória se faz necessário para corpos tão sequiosos de pulsação e vigor como os nossos. Nascemos para ser eternos. E para não morrer, vou traçando biografias, desdobrando-me em várias faces, umas bonitas e outras feias, e por isso sempre humanas e divinas. Feitos à imagem e semelhança de Deus, como ele somos terríveis e belos. Toda representação carrega isso, essas dubiedades. Nossos discursos padecem do contraditório. Dou graças a Deus por tanta imperfeição, pois assim nos movemos, aos trancos e barrancos, para a plenitude. Movemos-nos enquanto existe vida.

 

Não me defino, eu sei; mas me escrevo. Vou gerando no útero das palavras a mim mesmo. E o meu retrato, com traços de fingimento e verdade, é o retrato de todos nós, os que sobrevivemos dia após dia. Grávido de tudo e de mim mesmo, portanto prenho sempre de indagações, eu me crio e me destruo constantemente. Sou Penélope. A antiga e sempre Penélope com sua tessitura.

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