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Por água abaixo

16 de Setembro de 2016, por Evaldo Balbino

Sá Maria Bernadina tinha dado permissão. Isso tinha. Lembro que ela, lenço na cabeça, boca sem dentes, rosto cheio de rugas e bondade, convidou lá do alto da escada:

– Pode levá, meus neto! Leva que o Tonho num tá’qui não!

E arrematou com sua voz cantada de vó de muitos netos:

– Faiz doce e num dexa de trazê um tiquinho pra vó não, viu!?

Bernadina fora parteira de minha mãe em quatro dos dez partos. Nos seus braços vieram ao mundo o Dola, o Everaldo, a Ceia e este que à luz do mundo agora lhes fala, escrevendo nestas linhas. Os outros seis nascimentos foram realizados por outras mulheres experimentadas na arte de assistir parturientes. A Lia do Zezinho e a Joaquina do Firme receberam nas mãos o meu irmão mais velho, o Nonô. O Elton e a Neia nasceram ante os olhos da Sá Bilica. A Fia veio ao mundo no colo da Lia do Zezinho, de novo ajudando nossa mãe. A Conceição do Simão recebeu a Elenice. E a caçula Aline, já em tempos mais modernos, nasceu foi no Hospital de Nossa Senhora das Mercês, em São João del-Rei, com médico, enfermeira e toda a parafernália da medicina.

Mesmo sendo parteira só de quatro, desde sempre a Bernadina adotara os nove rebentos como seus netos. Não chegou a conhecer a Aline, que nasceu depois da sua morte. Mas se tivesse conhecido, teria sim a décima neta, que seu coração era de mãe, imenso que não acabava mais.

Permissão dada, o pomar convidativo lá no morro nos chamava. A Fia, o Dola, a Ceia e eu fomos alegres, peneiras nas mãos e bocas já pensando no doce que seria feito, na doçura da goiaba no tacho quente, a pasta avermelhada se ofertando saborosa ao nosso desejo de açúcar e vida.

E a vida, naqueles instantes, mostrava sua cara de beleza e bondade. Boa e bela, a existência nos permitia subir pelas goiabeiras, contíguas e frondosas, os troncos predominantemente lisos dificultando a gostosura da escalada, uma aventura de dar água na boca. Os caules, com poucos nós e tortuosidades, e os galhos a esmo nos ajudavam na tarefa. O Dola ia mais alto, catatau e esperto desde sempre. E pássaros voavam entre os galhos, nem se importando com a nossa presença. Aceitavam dividir conosco o que de graça lhes era dado por Deus. A Fia ficou embaixo das árvores, pegando as goiabas que lhe jogávamos ou as colhendo pelo solo esparramadas. Em sua faina de catadora, às vezes mandava um lembrete:

– Num joga no chão não, gente! Machucadas, num dão doce bão não!

Apesar dos avisos, continuávamos jogando às vezes. Eu, sinceramente, não sabia se jogava ou se comia. Para não me corroer na dúvida, ia alternando os gestos: ora as mãos ágeis atiravam para baixo as frutas doces, ora a boca ávida mordia as polpas com afoito de infância e felicidade.

Depois da gula saciada e de mãos e braços destreinados na tarefa de macaco, descemos e passamos a ajudar a Fia na colheita das goiabas pelo chão. Usamos a desculpa de que ela não estava dando conta do recado, de que precisava de ajuda lá embaixo. Fingiu que acreditou, a nossa irmã. E fomos trabalhando juntos, acabando de encher as peneiras. A Ceia e eu, pequeninos, levaríamos as menores, que criancinhas têm pernas e braços aquém da vontade. Esta sim, imensa.

No exato momento em que colocávamos as peneiras sobre nossas cabeças, do nada apareceu o seu Tonho no meio do pomar. Entre as sombras das árvores, escondendo-se do Sol sobre a vida, eis que surgiram o homem e sua carabina. Meio corcunda já, o corpo do proprietário cedendo ao tempo; mas a ganância falando alto, insistindo em viver para além do mundo, do universo, como se fosse possível reter entre as mãos as frutas, as árvores, a fazenda, o povoado, a vida e toda a sua matéria.

Nosso susto, enorme, cresceu mais do que a vontade de doce no tacho. Caíram as peneiras e as goiabas. Estas foram rolando morro abaixo. Nossas pernas cresceram mais ainda, sem peias. Avançamos para depois do pomar, pela estradinha subindo que nos dava fuga. Fomos subindo com pressa o morro, deixando para trás nossas goiabas dadas pela Sá Maria Bernadina. Nossa vontade foi podada sem pena. Cortada ao meio como se corta uma árvore em sua promessa de fruta. E os frutos no tacho, a mão de nossa mãe mexendo a vida açucarada e bela, tudo isso ficou apenas no sonho. Devaneio rolando pelo chão.

Lá embaixo ficaram os gritos do Seu Tonho. Sua boca, espumando de raiva, gritava que era para levarmos tudo e terminarmos com a roubalheira que tínhamos principiado. Lá permaneceram o homem e sua voz. Rumor de tempestade eterna caindo sobre nossos ouvidos.

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