Para Geraldo Vandré e outros mais
que tanto e belamente falaram, falam e falarão.
Quando conheci o livro Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, uma dádiva se me deu.
Lá no Ensino Médio, em Resende Costa, tive acesso a apenas um fragmento da obra, pelas mãos da nossa professora Regina Coelho. Era aquele trecho que se abre com uns versos que nunca mais saíram da minha cabeça: “Nunca esperei muita coisa, / digo a Vossas Senhorias. / O que me fez retirar / não foi a grande cobiça; / o que apenas busquei / foi defender minha vida / da tal velhice que chega / antes de se inteirar trinta”.
Que coisa linda, meu Deus! Como se buscar a vida, a juventude da vida, não fosse por si só algo grandioso. De fato não é cobiça buscar a sobrevida, a dignidade da vida. Aquele “antes de se inteirar trinta” me chocou à época. A professora explicando o poema, e eu pensando muito nas pessoas envelhecidas antes da hora.
Anos depois, lendo a obra toda, me deliciei com o canto tão bonito que João Cabral dedica à vida. Não é à toa que o autor subintitulou seu livro assim: “auto de Natal pernambucano”. Cantando a morte, o poeta cantou a vida, o espetáculo da vida.
A voz do poeta me chega várias vezes, quando retomo o livro e com ele acesso o drama dos retirantes nordestinos. Acesso o rosário, as ladainhas de Severino por cidades e vilas. Acesso a vida de cada dia, feita de pás, enxadas, foices, ferros de cova, estrovengas e braços relutantes. Acesso as vidas de água pouca, de cuia rasa, de farinha parca. As vidas tentando esconder-se em camisas de tecido grosso. Nas viagens retirantes que acesso, escuto Severino, empedernido, aprendendo a viver com a pedra, dizendo-me ao pé do ouvido a música da vida.
Recentemente tive acesso a um depoimento de Cabral quanto ao livro em discussão, e aqui transcrevo um fragmento em que o autor nos conta sobre uma conversa com Vinicius de Morais, o qual se mostrara maravilhado com Morte e Vida Severina: “– Vinicius, eu não escrevi Morte e Vida Severina para intelectuais como você – respondi – Escrevi para os sujeitos analfabetos que ouvem cordel na feira de Santo Amaro, no Recife. O poema é simples, retrata a típica realidade do pernambucano que foge da seca em busca do Recife e termina morando numa favela ribeirinha. Foi um sucesso mundial. Isso me orgulha, mas também me surpreende, porque Morte e Vida Severina passou a ser coisa de eruditos.”.
Isso sim é um bom texto, minha gente! Aquele que pode ser lido por pessoas quaisquer, independente da escolaridade. E Morte e vida Severina não é tão fácil assim não! Mas é tão humano, tão dolorido, tão musical e ritmado, que o lendo é como se estivéssemos rezando. Um louvor para Deus e um canto para a vida. A morte fica ali, em cada verso, piscando seus olhos de noite escura. Mas a beleza do poema transcende a morte que nos rodeia. A poesia, ao revelar a morte, supera o poder da escuridão e do nada.
No mesmo depoimento, Cabral chega a dizer e a se perguntar: “E se quisesse poderia ter feito mais dezenas de Morte e Vida Severina, mas pra quê?”. Ele, na verdade, fez várias vidas severinas. Cada livro seu esbarrou na morte, na secura da vida. Mas justamente por fazer poesia, o que sempre sobressaiu nos seus textos foi a vida. E não outra coisa.
No mesmo depoimento a que me refiro, o escritor ainda diz: “Então fui continuando a escrever. É difícil explicar por que continuei escrevendo”. Cabral, na verdade, escreveu pelo mesmo motivo que todo mundo escreve. Ele escreveu para exorcizar a morte. Esse é o nosso desejo, o mais eterno de todos. Nesse sentido é sintomático o poema “O exorcismo” (do livro Crime na Calle Relator, também de Cabral), em cujos versos o sujeito poético é interpelado por um médico, o “Grão-Doutor”: “Por que da morte tanto escreve?”.
Ao que responde o nosso poeta: “Nunca da minha, que é pessoal, / mas da morte social, do Nordeste.”.
O médico, confrontando, neste poema narrativo-dialógico, os escritos de Cabral aos de outros escritores nordestinos, afirma: “Seu escrever da morte é exorcismo, / seu discurso assim me parece: / é o pavor da morte, da sua, / que o faz falar da do Nordeste.”.
Assim prosseguimos nesta faina de escrever, todos nós, falando das mortes para vivermos a vida. E tudo na verdade é vida, quando o silêncio ainda não nos tomou. Lembro aqui a imagem, em Hermann Hesse, da morte como mãe eterna e de nós como filhos aflitos: “hei de vê-la então como eterna mãe, seu grito / como sinal de amor, e eu como filho aflito.”.
Falemos, então! Falemos para não morrer. Falemos antes que anoiteça, antes que a morte viva em nós.