A expulsão dos ‘protestantes’ de Resende Costa


Especial centenário de nascimento do monsenhor Nélson

André Eustáquio/Emanuelle Ribeiro/João Magalhães6

Quando o monsenhor Nélson Rodrigues Ferreira assumiu a Paróquia de Nossa Senhora da Penha de França, em 1944, a população de Resende Costa era 100 por cento católica. O novo pároco encontrou um rebanho fiel à doutrina católica e praticante dos ritos. Nada podia ameaçar o domínio da Igreja Católica na Resende Costa dos anos 40. Pelo menos era assim que pensava o jovem padre Nélson, até se dar conta de que alguns evangélicos - ou “protestantes” como ele os intitulava -, tinham o intento de se fixarem na cidade.

Esse movimento iniciou-se em 1945, um ano após a posse do padre Nélson como vigário de Nossa Senhora da Penha. Desde que ficou sabendo que protestantes queriam vir para Resende Costa, as noites de sono do vigário já não seriam mais tranquilas. Pode-se imaginar que ele tenha sentido algum tipo de medo. Ou seja, que sua influência sobre o rebanho pudesse ser ameaçada a partir da chegada à cidade de pastores de outra denominação religiosa.

Padre Nélson, como era de se esperar, não ficou parado esperando os protestantes chegarem, inaugurarem sua igreja e iniciarem sua pregação. Ele tratou logo de agir e, no intento de dificultar a permanência deles na cidade, estabeleceu uma estratégia: “Há cerca de três anos nossa paróquia tem sido alvo de algumas incursões protestantes, de uma seita que se denomina Congregação Cristã Brasileira, com sede em São Paulo. Como medida de precaução e defesa, vínhamos aconselhando os nossos paroquianos a se esquivarem dos mesmos, evitando encontros, discussões e até mesmo de estarem em qualquer espécie de negócio com eles. Esses protestantes vieram de Volta Redonda, a convite de um tal José Barbosa, filho de Resende Costa residente em Volta Redonda, onde se perverteu. Fanáticos e insinuantes estavam eles conseguindo entrada em algumas casas, onde se reuniam alguns menos precavidos. Usando de meios desleais, prometendo colocações rendosas, aqui e fora, a moças e homens, abusando da pobreza e ignorância de muitos, acabariam por fincar-se aqui, se cruzássemos os braços. Como desejavam adquirir propriedades, entramos em entendimento com os proprietários de casas a venda, tendo alcançado de todos a promessa formal de não venderem as suas propriedades”, escreveu padre Nélson no primeiro volume do Livro de Tombo da paróquia.

As tratativas do vigário com os proprietários de imóveis na cidade poderiam ter logrado êxito total, se um deles não descumprisse o que foi acordado “formalmente”. Trata-se do médico e ex-prefeito de Resende Costa, Dr. José Vilela Costa Pinto que, naquela ocasião, já residia com sua família em Barbacena. Dr. Costa Pinto prometera ao padre Nélson “tudo fazer que estivesse ao seu alcance para não vender suas propriedades aos protestantes”. Mas a promessa não foi cumprida. “Estávamos longe de suspeitar o ‘estouro da boiada’ com a notícia aqui chegada dia 8 de setembro (1948) de que o Dr. Costa Pinto firmou com os tais uma escritura de compromisso para venda de uma casa, com promessa de venda posterior do restante de suas propriedades (...)”.

As negociações do Dr. Costa Pinto com os protestantes foram qualificadas pelo padre Nélson como “traição”. Mas nem por isso, ele se viu derrotado, embora saísse bastante desgastado da batalha: “Pulamos em campo para embargar essa venda. Passamos maus dias, muitas noites mal dormidas”. Padre Nélson desejava adquirir os imóveis antes que os protestantes o fizessem. Mas para isso teria que usar uma das apólices da Santa Casa, o que obrigatoriamente necessitava de autorização do arcebispo de Mariana, dom Helvécio Gomes de Oliveira. “A transação seria feita sem prejuízo para a Santa Casa, pois tínhamos promessa de auxílio pecuniário de alguns particulares”, esclareceu padre Nélson em seu registro no Tombo.

O que padre Nélson não esperava aconteceu por meio de um telegrama. Dom Helvécio recusou formalmente sua solicitação, colocando ponto final no projeto do vigário de Resende Costa de adquirir os imóveis do Dr. Costa Pinto. “Sem outro remédio, continuamos, sem desânimo, estudando uma solução para o caso”, escreve padre Nélson, sem demonstrar qualquer resignação.

 

A solução

 

Enquanto padre Nélson tentava encontrar uma solução para conter os protestantes em Resende Costa, a população da cidade já arquitetava um plano. Os pastores que aqui chegaram não foram bem acolhidos. Agenor Gomes, com treze anos na época, se lembra do clima que se estabeleceu na cidade: “O povo da cidade, apesar de hospitaleiro, católico, na sua totalidade, não os recebeu com boas-vindas. Olhava-os de soslaio e de largo. Via-os, portanto, com os olhos da desconfiança. Não se aproximava deles e, muito menos, permitia qualquer mais chegada avizinhação. Eles lá ou acolá e o povo daí bem distante. Foi aí que surgiu um ‘negócio’: Falou-se na época e eu ouvi. Não tendo a adesão do povo, gente grande e adulta, que fizeram os tais de protestantes? ‘Passaram a aliciar crianças’. Aqui já afirmo eu: ‘Tal fato não se deu comigo, apesar de criança’. Foi aí então que a coisa pegou fogo de vez. Revoltaram-se os pais. E contra os protestantes aumentava o estado de tensão. Tornava-se insuportável tolerar e admitir a presença desses estranhos na cidade. Com o clima agitado, surgiu, então e naturalmente, a ideia de convidá-los a deixar Resende Costa espontaneamente”.

Os relatos de Agenor Gomes deixam transparecer que o povo realmente seguia as orientações do padre Nélson de evitar qualquer contato com os protestantes. Apesar de não ter participado ativamente, é bem provável que o vigário sabia muito bem o que estava para acontecer e não entrou em campo para remover do povo a ideia efervescente de expulsar os protestantes da cidade.

No Livro de Tombo ele relata os fatos: “A deliberação destes protestantes de se fixarem em Resende irritou o ânimo geral dos católicos que aqui se orgulham de ser a totalidade da população. Dia 10 de setembro (1948), desde cedo, notava-se que alguma cousa se tramava. Conversamos com várias pessoas ponderadas a quem pedimos e aconselhamos toda prudência sobre o caso. Gostaríamos que se fizesse apenas uma manifestação pública, de fé católica, diante da casa onde se achavam eles hospedados. Desde 6 horas da tarde se ouviram vários foguetes: era o toque de reunir. Às 7 horas, já era enorme o alarido que se fazia diante da casa do sr. Antônio Gonçalves, à Rua Dr. Abeilard. Nesta hora rezávamos o terço na Matriz com grande número de senhoras e moças. Contra o costume geral deste povo, não se via um homem na igreja. Enquanto diante da casa em que se achavam os protestantes centenas de homens, mulheres e crianças davam entusiásticos vivas à Religião Católica, ao Clero, à Nossa Senhora, quatro homens se dirigiram aos protestantes que, amedrontados, tentavam fugir pelos fundos, e os intimaram a ‘sair espontaneamente’ da cidade naquela mesma noite. Todas as garantias lhes foram dadas. O povo acompanhou-os até às autoridades perante quem assinaram uma declaração, e, em seguida, foram postos em um automóvel (de propriedade do Nito do Saturnino Chaves) e levados e acompanhados até o Viegas, fora da cidade. Os vivas eram ensurdecedores. Terminado o bota-fora, veio o povo à frente da Casa Paroquial prestar-nos uma pequena homenagem e, em seguida, se dirigiu para a matriz onde todos entraram entoando cânticos a Nossa Senhora. Tudo serenou já às 9h e 15 minutos. Aguardaram eles, nossos irmãos separados, essa manifestação dos católicos durante mais de duas horas, gastos no tempo em que relutaram em sair de casa, no trajeto até a casa do escrivão, e no tempo gasto em se redigir a declaração (redigida pelo escrivão ad hoc Sérgio Procópio de Resende). A bem da verdade é bom que se diga ter havido da parte de meia dúzia de homens e mulheres, muito exagero em vivas, palavras e atitudes bem descaridosas. Não foram, graças a Deus, agredidos fisicamente”.

Foram expulsos da cidade no dia 10 de setembro de 1948 os pastores membros da Congregação Cristã do Brasil João Manoel Pereira e Joaquim Alves da Silva. Na ocasião, perante as autoridades locais, eles declararam “que vieram a Resende Costa a fim de pregar o Evangelho”.

 

Repercussão

 

A expulsão dos dois pastores da Congregação Cristã do Brasil ganhou repercussão na imprensa. Jornais de Barbacena (“A cidade de Barbacena”), de São João del-Rei (“O Correio” e o “Diário do Comércio”), de Belo Horizonte (“O Diário”), do Rio de Janeiro (“Diário do Norte”) e Amparo – SP (“O Comércio”), publicaram reportagens destacando o fato ocorrido em Resende Costa. Padre Nélson comenta as publicações e discorda de algumas informações veiculadas pelos jornais da época: “Descobrem-se logo exageros e inverdades. Exageros, quando fala-se em mais de 2.000 pessoas. Segundo cálculos mais verdadeiros, o número pouco ultrapassou a mil. Inverdades, quando falam que os protestantes iam inaugurar seu templo, e que foram postos num caminhão. Não tinham ainda templo para inaugurar, pretendiam, por enquanto, residir aqui. Não foram obrigados a ocupar um caminhão. Arranjou-se um automóvel que os levou até o Viegas, a dois quilômetros da cidade, onde pernoitaram em casas de pessoas conhecidas”.

A expulsão dos primeiros evangélicos aconteceu durante um período no qual a Igreja Católica detinha a totalidade dos fiéis de Resende Costa. “Trata-se de um fato e não de um ato, vez que a ação realmente aconteceu. Está registrado na história de Resende Costa. Não me cabe julgá-lo. E nem, se pudesse, o faria. Trata-se de um movimento de tendência religiosa, acontecido no ano de 1948 e que só pode ser julgado, no seu contexto, dentro de sua época. E, exclusivamente, por aqueles que o vivenciaram em profundidade. Julgá-lo agora, hoje, seria uma injustiça. E das grandes. As coisas mudaram. Hoje, já se toleram as intolerâncias. No ano de 1948, na sua plenitude, na sua máxima extensão, não. E foi o que aconteceu”, disse Agenor Gomes, ‘testemunha’ do episódio de 1948.

 

Comentários

  • Author

    Quando criança meu pai me contou esse acontecido e eu ficava imaginando o medo que esses “protestantes” passaram.Mas ,agora, graças a esses brilhantes jornalistas, ficou muito claro que , quem passou medo mesmo foi o jovem padre a ponto de perder noites de sono!! Veja “... Desde que ficou sabendo que protestantes queriam vir para Resende Costa, as noites de sono do vigário já não seriam mais tranquilas. Pode-se imaginar que ele tenha sentido algum tipo de medo. Ou seja, que sua influência sobre o rebanho pudesse ser ameaçada a partir da chegada à cidade de pastores de outra denominação religiosa....” Se naquela época “ meia –dúzia “ de protestantes causaram tanto medo no vigário , imagine hoje então!!!


  • Author

    Depois de ler esta matéria me veio alguns questionamentos:

    Por que as autoridades da época não evocaram o texto constitucional de 1946, já que o fato ocorrera em 1948?

    Será que eu posso julgar essas atitudes com base na carta magna de 1946?

    Veja o texto da constituição no seu artigo 141 §7-8 de 1946 nossa lei maior na época:

    § 7º - É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.
    § 8º - Por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém será privado de nenhum dos seus direitos, salvo se a invocar para se eximir de obrigação, encargo ou serviço impostos pela lei aos brasileiros em geral, ou recusar os que ela estabelecer em substituição daqueles deveres, a fim de atender escusa de consciência.

    Causo-me estranheza quanta riqueza de detalhes nessa reportagem, mais parece um induzimento a parcialidade e a intolerância religiosa é quase uma cartilha ensinado a população a rejeitar os protestante, substanciado sobre um fato histórico.


  • Author

    Li essa reportagem e fiquei impressionada com as atitudes de um líder espiritual e com seu medo.Medo de DOIS protestantes que queriam apenas"PREGAR O EVANGELHO",como eles mesmo disseram.E em relação aos exageros, não importa como foi feito e sim o que foi feito.Ainda bem que Resende Costa mudou ou melhor os líderes espirituais mudaram.Hoje a religião Evangélica vem crescendo muito e principalmente em Resende Costa.E esse fato só retardou isso.Devemos aprender a respeitar, POIS DEUS É UM SÓ.....


  • Author

    Realmente foi um fato,fato triste,onde DOIS PROTESTANTES foram expulsos de Resende Costa por não serem católicos.Expulsos por pregar o evangelho,a PALAVRA DE DEUS.Mas isso foi a muito tempo,as coisas mudaram muito,Resende costa mudou,os líderes espirituais mudaram...Hoje Resende Costa tem várias religiões e seitas.Aprendemos a respeitar e conviver com as diferenças.E esse fato só adiou o inevitável. SOMOS TODOS FILHOS DE DEUS!


  • Author

    Se católica fosse teria vergonha do que o monsenhor Nelson fez. Não vejo diferença nenhuma entre a atitude dele e dos terroristas que hoje são tão criticados. Em nome de sua religião, o monsenhor impediu cidadãos brasileiros de morarem em Resende Costa como se donos fossem da cidade e não venham me dizer que era o contexto da época pois a lei já existia, basta analisar a Constituição de 1946. Como cidadãos brasileiros, os pastores tinham direito de morarem onde quisessem no território nacional. O Estado é laico, ou seja, não existe religião oficial no Brasil. Além disso, a liberdade de culto é assegurada pela Constituição Federal que é a carta magna.


  • Author

    Sessenta anos se passaram desde que os Protestantes foram expulsos de Resende costa.Que ameaça era essa que tanto o povo e seu líder espiritual temiam? por que só agora essa reportagem veio a tona? será que no momento também somos uma ameaça? sou evangélica e fiquei por entender a reportagem sobre o ocorrido.Mesmo passando 69 anos ainda somos discriminados e perseguidos em nossa cidade.Digo nossa cidade porque ela é NOSSA não é?ou pertence a alguém em especial? somos todos filhos de um único só DEUS.Tenho certeza de que todos nós que não somos católicos nos sentimos entristecidos . Fui criada em um berço católico e foi com um pastor e uma igreja onde todos são bem vindos é que encontrei o que eu precisava.


Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário