O professor que escrevia com os dedos


Especial centenário de nascimento do monsenhor Nélson

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Monsenhor Nélson, professores e alunos do Ginásio Nossa Senhora da Penha. Destaque para a presença do jogador de futebol Tostão, paraninfo da turma. Foto Matilde

A atuação do monsenhor Nélson Rodrigues Ferreira em Resende Costa não se limitou apenas ao pastoreio do rebanho da Paróquia de Nossa Senhora da Penha de França. A presença forte e atuante do vigário é registrada na política, nas obras sociais, no desenvolvimento urbano e na educação da cidade.

Conforme vimos no início desta série especial, padre Nélson cultivou desde criança o apreço pela Igreja e pela intelectualidade. Ainda menino sentiu forte o chamado ao sacerdócio. Dona Mariquinhas, sua mãe e mestra, soube conduzir os passos do filho no caminho da fé e da boa educação.

Padre Nélson assumiu a Paróquia de Nossa Senhora da Penha com trinta anos de idade, após exercer, durante cinco anos, o ministério sacerdotal na Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, em São João del-Rei, como vigário coadjutor. O jovem padre trouxe para Resende Costa, em 1944, experiência sacerdotal e sólida formação intelectual adquirida durante longos anos de estudo no renomado Seminário Arquidiocesano São José, em Mariana.

Na pequena Resende Costa da década de 1940 poucas pessoas tinham o privilégio de após alfabetizadas continuarem seus estudos. As famílias que dispunham de boas condições financeiras geralmente enviavam seus filhos para estudar em São João del-Rei em colégios particulares, como: Ginásio Santo Antônio e Colégio Nossa Senhora das Dores. Outra opção era os seminários católicos – neste caso, somente para os meninos.

No final da década de 1950, começa a surgir em Resende Costa um movimento que prometia revolucionar a educação na cidade, oferecendo oportunidade de estudo sobretudo para quem não tinha condições financeiras de estudar em outras cidades. Em 1959, padre Nélson se junta a um grupo de professores e outros cidadãos resende-costenses e fundam a CNEG (Campanha Nacional de Educandários Gratuitos). A CNEG, depois chamada CNEC (Campanha Nacional de Educandários da Comunidade), era o setor administrativo responsável pela parte patronal e financeira do Ginásio Nossa Senhora da Penha, fundado em 1960. Padre Nélson foi eleito no dia 15 de maio de 1959 o primeiro diretor do setor local da CNEG.

Na década de 1940, ou seja, 20 anos antes da criação da CNEG, o professor Geraldo Sebastião Chaves, de saudosa memória, criara um internato em Resende Costa, no qual estudaram alunos da cidade e de outras adjacentes. Desde esta época, Geraldo Chaves e seu irmão Helvécio Chaves já nutriam o sonho de se criar um curso ginasial na cidade. “O Geraldo Chaves foi o precursor do ensino em Resende Costa”, afirma o advogado Agenor Gomes, ex-aluno, um dos fundadores da CNEG e professor do Ginásio Nossa Senhora da Penha. O modelo de ensino gratuito veio da cidade vizinha de Passa Tempo.

No início, o ginásio funcionou no Grupo Escolar Assis Resende que, diga-se, encontrava-se em péssimas condições. No interior do Grupo, várias escoras de madeira sustentavam o telhado e algumas paredes. No início da década de 1970, o Nossa Senhora da Penha passou a funcionar onde hoje se encontra a Prefeitura Municipal, ficando lá até o encerramento de suas atividades, no dia 4 de março de 1986, já com o nome de Escola da Comunidade Nossa Senhora da Penha. O primeiro diretor do educandário foi Adriano Chaves da Fonseca. Depois vieram Abel Chaves de Mendonça, padre Nélson Rodrigues Ferreira e, por último, Geraldo Élson da Silva.



O rigoroso professor

Ao longo de sua carreira enquanto professor da CNEC, padre Nélson lecionou Geografia, História, Ciência e Religião. “A Religião não fazia parte do cronograma da Campanha, mas mesmo assim o padre Nélson queria impô-la, ferindo os princípios da Campanha. Ele dividia a aula de quarenta minutos entre Geografia e Religião, e cobrava Religião na prova de Geografia”, recorda-se o ex-aluno Agenor Gomes.

Sua ex-aluna, a professora e colunista do JL, Regina Coelho, se recorda com carinho das aulas do antigo mestre: “Guardo de suas aulas as melhores lembranças. Uma delas me remete ao caminho que ele fazia até chegar à sala de aula. Passando pelos corredores do Colégio, ele procurava evitar contato físico mais próximo com alunos porventura ali reunidos”.

Tal como em uma celebração litúrgica, na escola padre Nélson seguia rigorosamente um ritual. “O ritual de toda aula começava infalivelmente com a procura pelos toquinhos de giz desprezados pelos outros professores e aproveitados por ele. Achávamos graça naquilo, é claro, disfarçando nosso riso”, recorda-se Regina. O ritual do padre Nélson provocava os cochichos entre os alunos, evidentemente que de forma discreta para não despertar a ira do rigoroso professor. “Quando ele começava a escrever no quadro era um cochicho só, aliás, coisa bem típica de uma turma de alunos. No nosso caso, a brincadeira consistia em dizer que era impossível haver algum pedaço de giz em sua mão, dado o tamanho minúsculo do mesmo, e que nosso professor escrevia literalmente só com os dedos”, conta a ex-aluna.

Apesar de rigoroso e, por isso, às vezes temido por alguns alunos, padre Nélson tornou-se em Resende Costa modelo de professor culto e competente. “As aulas dele eram fora de série. Explicava de maneira muito clara”, diz Agenor. “Ele desenhava mapas à mão livre com boa precisão, uma habilidade que muito nos impressionava usada como ilustração em suas aulas de História”, diz Regina.

Para o 2º Grau padre Nélson lecionou também Filosofia. Segundo Regina Coelho, “ele não perdia a oportunidade de demonstrar sua admiração por Santo Agostinho, cuja vida gostava de nos contar, citando a conversão dele à fé católica”. Porém, alguns temas polêmicos da história da Igreja eram tratados por padre Nélson de forma, digamos, não tanto aprofundada: “Todos estávamos esperando que ele falasse da Inquisição. Quando chegou nessa parte, ele explicou superficialmente. Falou muito rápido. Ele preferiu se omitir”, diz Agenor.

O professor padre Nélson era também rigoroso nas avaliações, conforme conta sua ex-aluna Regina: “Em dias de prova, tínhamos de levar uma folha de papel almaço. Nela, antes de escrever as questões que ele ditava, deveríamos fazer, sob sua orientação, uma determinada margem seguindo a seguinte instrução: folha na vertical dobrada ao meio e redobrada a primeira metade, sendo um quarto dela o correspondente à margem”.

Nomeado diretor do Ginásio Nossa Senhora da Penha em meados da década de 1960, padre Nélson acumulou o cargo com o de professor até 25 de agosto de 1977, quando se aposentou. No início da CNEC, os professores e diretores trabalhavam sem receber salário: “Trabalhei com o padre Nélson por algum tempo sem receber nada. Como diretor, ele administrou o Colégio muito bem. Não havia pagamento de salário, as pessoas recebiam gratificação”, explica Agenor Gomes.



O baile de formatura

O rigor do padre professor foi experimentado pelos formandos da primeira turma do Ginásio Nossa Senhora da Penha no dia 15 de dezembro de 1963. Fim de ano e de curso. Entusiasmadas, as alunas chegaram a mandar fazer os vestidos para serem usados naquela que tinha tudo para ser uma noite especial. A expectativa era grande para o baile de formatura do Ginásio, até o professor padre Nélson “melar a festa”. “Padre Nélson não permitiu o baile, ele acabou com a festa. E ainda disse: vamos começar por Resende Costa, e acabar com esses bailes comemorativos de formatura”, lembra-se Agenor Gomes, que foi aluno da primeira turma do Ginásio Nossa Senhora da Penha.

As alunas ficaram, obviamente, frustradas com o cancelamento do baile. Já os meninos, nem tanto: “O Bié do Lindolfo (Gabriel Caetano da Silva) organizou o baile dos meninos. Éramos poucos, mas nós tivemos a nossa festa”, diz Agenor. O baile dos meninos aconteceu na casa do dentista Antônio de Resende e foi abrilhantado por músicos da cidade. Os familiares dos alunos participaram do baile, que teve até valsa no final. O já Cônego Nélson, nesta ocasião, ainda não era diretor do Ginásio, porém, enquanto professor e vigário da cidade tinha, como ninguém, autoridade moral e prestígio suficientes para cancelar um baile de formatura. E assim o fez. “O que o padre Nélson falava, as pessoas obedeciam. Ninguém contestou”, destaca Agenor Gomes.



A biblioteca da Casa Paroquial

Uma das maiores dificuldades dos alunos do Nossa Senhora da Penha era encontrar livros disponíveis para pesquisar e fazer tarefas passadas pelos professores. A salvação da maioria era a biblioteca da Casa Paroquial. Até hoje muitas pessoas na cidade se recordam das inúmeras vezes em que foram recebidas pelo padre Nélson no escritório paroquial a fim de consultarem seus livros, tais como: enciclopédias, livros de Ciência e de História.

 

Mesmo com seu jeito austero, na maioria das vezes distante, padre Nélson marcou a vida de muitas pessoas que conviveram com ele, de modo especial na sala de aula. Enquanto educador será para sempre lembrado por sua inteligência e vasta cultura. “Cidadão generoso ao oferecer sua biblioteca na Casa Paroquial para as pesquisas escolares dos que o procuravam, educador culto, simples, ameno e tradicional, padre Nélson tem seu nome definitivamente associado à Educação em Resende Costa”, conclui sua ex-aluna Regina Coelho.

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