Dona Mariquinhas: mãe do monsenhor Nélson


Especial centenário de nascimento do monsenhor Nélson

André Eustáquio, Emanuelle Ribeiro e João Magalhães0

fotoDona Mariquinhas e o filho Vivi

“Quem encontrará a mulher talentosa?

Vale muito mais que pérolas.

Abre a boca com sabedoria, e sua língua

ensina com bondade” (Pr 31,10-26).

                                                      

1977: “Na manhã do dia 7 de abril, quinta-feira santa, após ter levado comunhão para 32 doentes em domicílio, fomos surpreendidos com a notícia da morte de minha mãe Maria Madalena Rodrigues Ferreira. Filha de Ivo Rodrigues Moreira e Amélia Teodolina de Almeida, nasceu em Madre de Deus de Minas aos 30 de junho de 1894. Passou boa parte de sua meninice na cidade de Lima Duarte. Casou-se em 1913 com José Ferreira Mendes e foi mãe de quinze filhos, sete dos quais falecidos há muitos anos. Foi professora pública em Piedade do Rio Grande, de 1913 a 1942. Dia 6 de abril estivera até tarde na catedral do Pilar, esperando sua vez para se confessar. Tendo-se confessado, adoeceu às vinte e três e meia horas, falecendo às 10:30 do dia seguinte, comemorando a Páscoa do Senhor com a sua passagem desta vida para a Eternidade”. Assim relatou o filho, monsenhor Nélson, no Livro do Tombo da Paróquia de Nossa Senhora da Penha.

De 31 cartas que vão de 1937 a 1946, escritas para o monsenhor Nélson e cuidadosamente guardadas por ele, mas, desde sua morte, de posse de Haydée Ferreira (Dezinha) sua irmã, falecida em 2013, aflora naturalmente uma personalidade de grande estatura. As citações a seguir foram transcritas “ipsis litteris”, ou seja,como dona Mariquinhas as escreveu.

As cartas de 1937 a 13 de janeiro de 1939 vêm de Arantes, pois, em 1911, o distrito de Nossa Senhora da Piedade passou a se chamar Arantes, mas, daí em diante escreve sempre Piedade, embora o distrito voltasse a se chamar Piedade do Rio Grande somente em 1953, quando se transformou em município.

Dona Mariquinhas era uma excelente missivista, possuía uma caligrafia quase desenhada. Praticava um texto conciso, enxuto, contido, mas ao mesmo tempo claro e expressivo, pois explica e comenta tudo. Aplicava a pontuação a serviço da clareza. Chama atenção, por exemplo, o uso das reticências com valor semântico, ou seja, ironia, decepção, insinuação para o leitor concluir. Nas cartas há muitos momentos de poesia e sentimentos, bem como de fé e religiosidade a toda prova.

Era zeladora do Apostolado da Oração.  No início de suas aulas no grupo escolar de Piedade do Rio Grande, colocava todos os alunos de pé, e estes persignavam-se e faziam uma oração com ela.

Uma silhueta vai se preenchendo e surge uma mulher forte e talentosa. Esteio da família, fazia-se presente em todas as situações. Preocupava-se com tudo e com todos os seus. Jamais cedeu os pontos.

Dona Mariquinhas desenha com estas cartas um painel de vida de seus familiares: buscas profissionais, empregos, estudos, agruras pessoais, problemas financeiros, crises matrimoniais, comportamentos preocupantes e muito mais. Com isso, muitos aspectos da vida de Piedade do Rio Grande e redondeza também são retratados.

As cartas de 1937 vêm escritas em folhas de luto, tarjadas de preto. Revelam intensamente o baque da viuvez recente: “Eu triste, sempre triste, apesar de ter aparência de resignada; mas só Deus sabe o que se passa em minha’alma... Felicidade na vida, nunca mais... Bom será se eu tiver tranquilidade para morrer. (17/8/37).

Referindo-se ao filho Paulo: “Garanto que um internato com D. Celina para ele é maior castigo do que empunhar uma enxada, não acha?” (1/10//41 às 6:35 minutos).

Na mesma carta: “A árvore que plantei com tanto entusiasmo foi arrancada por alguém, por depravação. Opinião de muitas pessoas era que eu pedisse providências enérgicas ao subdelegado daqui; mas como estou tão só aqui nesta Piedade, tão indefêsa, resolvi silenciar. “Viúva pobre é o “gato e sapato” dos que não têm o que fazer. Também a pessôa que todos supõem ter arrancado, não merece consideração alguma. Não vale o latido de um cão. Jesus sofreu mais do que isso”.

Em alguns momentos revela-se severa, disciplinadora e rigorosa. Na carta de 10 de abril de 1942, 4h da tarde, reage a um comportamento inadequado de sua filha Aparecida, no colégio interno de freiras, onde estudava (segundo Zulma Ferreira, sua irmã caçula, tratava-se de um “sururu briguento” com colegas): “Pensei em escrever uma carta sevéra para ela mas depois detive-me. Pensei que talvez a Superiora já tivesse aplicado uma bôa dosagem... Eu já disse a Aparecida quando ela aqui esteve que por causa de casamento, ela não sairia do colégio; que só depois de concluídos os estudos ela teria ordem para tal”.

Veja a curiosa explicação do médico, em Madre de Deus.  Queixa-se: “tenho sentido dôres no braço esquerdo algumas vezes repercutindo nas costas e peito na região do coração. Há tempos que me apareceu uma tosse de que nunca fiz caso, mas que agora aumentou a ponto de incomodar... O médico para não me afligir, disse que não tenho nada no coração nem tuberculose e nem também tanta sifilis. Disse apenas, que estou com o pulmão direito um pouco oprimido pelo máu habito que tenho de dormir só do lado direito; e que por isto, o pulmão esquerdo respira mais que o outro 1 vêz e meia, e que d’aí provém certas novidades que tenho sentido” (9/8/39).

Zulma, sua filha caçula, descreve-a como uma mulher de incrível atuação. Além das atividades, como professora, era também alfaiate. Fazia roupas para homens e mulheres, bordava muito bem e consertava bonecas antigas: “Nelson, peço-lhe para comprar na Casa Chic 6 metros de Morim Canário ou Morim D. Pedro, você escolha o melhor e veja se eles fazem um preço camarada. Eles deram o preço de 34$000 qualquer das duas; mas prometeram fazer um preço mais comodo. Se você  puder, compra também na Casa Sade 1 metro de cretone amarelo; o preço é 6$400 e também 1 carretel de linha amarela (linha de bordar na máquina) para bordar o mesmo e também 1metro de feltro marrom claro na Casa Carlos Guedes. O preço de lá é 10$000 e nas outras casas custa mais caro” (carta de 9/8/39).

Fazia bonitos arranjos de flores e era também licoreira. Deixou, porém, de fazer os licores quando um seu genro passou a ter problemas com bebida.

 

O que as cartas revelam de dona Mariquinhas

Domínio da norma culta da linguagem, vocabulário rico, concisão e clareza de ideias, emprego preciso da pontuação, raciocínio lógico e coerente, caligrafia clássica e firme, estética aprimorada, explicitação de vínculos afetivos e respeito ao filho padre, que era ao mesmo tempo amigo, conselheiro, companheiro, ‘autoridade máxima’ para a família, protetor. Dona Mariquinhas era a matriarca, assumindo, logo após o falecimento do marido José Mendes Ferreira, a administração da vida e dos negócios da família. A leitura das cartas possibilita-nos constatar que era uma profissional atuante e batalhadora. Procurou encaminhar os filhos, sobretudo nos estudos e profissionalmente. As cartas revelam uma pessoa minuciosa e detalhista, preocupada em anotar, inclusive, o horário em que escrevia. Além do mais, possuía nível alto de escolaridade, confirmado pela capacidade de se expressar linguisticamente e pela cultura geral.

O destinatário das cartas – o filho padre – é tudo para ela. Pelo filho primogênito, afloravam afetividade e respeito, sobretudo pela posição eclesiástica. Afeto e respeito, portanto, se entrelaçam e se consolidam em companheirismo, amizade, aconselhamento, proteção, segurança e amparo (inclusive financeiro).

Através das cartas, Nélson participa ativamente da vida de seus familiares: é o filho padre, o irmão padre que dá a palavra final do que deve ser feito.

Enfim, torna-se evidente nas cartas a marca de uma mulher de personalidade forte, segura dos atos assumidos através da reflexão e análise do contexto em que a família está inserida. Busca na religiosidade apoio para levar adiante sua missão de matriarca viúva e que sente na pele os infortúnios de sua família.

Algumas cartas deixam transparecer sua composição literária com metáforas belas e de profundo sentimento. O conteúdo e a forma emocionam o leitor, tornando-o seu interlocutor – participando das situações descritas e dos dramas vividos, mas nunca lamuriosos, embora alguns exerçam um forte apelo emocional, como, por exemplo, o que revelam trechos de uma carta escrita em 1938 (ipsis literis):

 

Salve! 17 de fevereiro de 1938...

Saudoso e querido filho Nelson.

Deste recanto de Piedade envio-te hoje uma braçada de flores com um saudoso abraço e parabéns sinceros pela data de teu aniversário.

Certamente perguntarás a ti mesmo: ”Onde estão as flores? Pois bem, eu te responderei. As flores de que me refiro não são as que desabrocham hoje e falecem amanhã crestadas pelos raios do sol. As flores que te envio são orações e saudades roxas nascidas no meu coração e desabrochadas com esta longa ausência de 8 meses!...

Embora me disseste pelo telefone não poder vir aqui neste mês de fevereiro, não deixei por isso de esperar-te e contava quase certo poder abraçar-te pessoalmente no dia de hoje.

Este dia deveria ser para mim de grande alegria, entretanto sinto-me bem triste por estares ausente. Sinto-me mais saudosa do que nunca. Acho o meu lar vasio e triste, acho-me tão só nesta Piedade... Desde dezembro até ontem (dia16-2) eu te esperava de certo e a cada momento.

Quando vou á S. João as saudades aumentam e é com grande impaciência que espero a chegada do trem e olho de binoculo para a Estação a ver se vejo algum “padre” desembarcar... Aqui são os apitos e barulhos de caminhão e automóvel que não me dão socego. Mas agora estou resolvida a lutar comigo mesma e a não pensar nisto mais...

Aceita de todos daqui saudades, abraços e parabéns. Mais um saudoso abraço e benção de tua mãe muito saudosa. Mariquinhas. (Há um “abraços meus” escrito ao lado por seu irmão Wilson).

 

Colaboração: Marisa Magalhães

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