O menino que nasceu padre


Especial centenário de nascimento do monsenhor Nélson

André Eustáquio, Emanuelle Ribeiro e João Magalhães0

Haydée e Zulma ferreira, irmãs do monsenhor Nelson (Foto Emanuelle Ribeiro)

Nélson Rodrigues Ferreira nasceu em 17 de fevereiro de 1914 na Fazenda do Córrego do Peixe, distrito de Emboabas, município de São João del-Rei. A propriedade pertencia a seus avós paternos Antônio Rodrigues Ferreira e Cassiana Justiniana Ferreira. Desde criança Nélson sonhava ser padre: “Desde pequenininho todo brinquedo dele era brinquedo de padre. Antes de falar, ele já gostava de vestir camisola como se fosse batina. Gostava de rezar e chamava os colegas para a brincadeira”, contou a irmã Haydée Ferreira, a dona Dezinha, falecida em maio de 2013.

Padre Nélson vem de uma família de oito irmãos e é o filho primogênito da professora Maria Madalena Rodrigues Ferreira e do escrivão José Mendes Ferreira. A primeira residência dos pais, depois de casados, foi em São Sebastião do Paraíso, um pequeno povoado pertencente ao então município do Turvo, hoje Andrelândia. Nélson foi batizado no dia 25 de abril de 1914 em Emboabas. Na igreja de São Sebastião do Paraíso, ele recebeu a primeira comunhão no dia 13 de abril de 1921. Segundo relatos de Inês Maria Teixeira, amiga da família e ainda residente no Paraíso, hoje município de Piedade do Rio Grande, a vida no povoado era difícil: “Havia poucos moradores e casas pequenas. Festas, apenas de igreja. Não tinha luz e, por isso, poucos saíam à noite. As pessoas trabalhavam na roça para tirar o sustento. Quando alguém adoecia era difícil ir ao médico e em casos urgentes só era possível em São João del-Rei”. Após a infância dos filhos no Paraíso, a família foi para Piedade, onde Maria Madalena se tornou a primeira professora do local e José o primeiro escrivão de paz.

Os avós paternos, Antônio e Cassiana, eram proprietários de duas fazendas que fizeram parte da vida do padre Nélson: além do Córrego do Peixe, havia a Fazenda da Serra, que seria marcante no sacerdócio de Nélson Rodrigues. De acordo com ZulmaFerreira Françoso, irmã caçula do padre Nélson, a avó paterna era quem tinha posses, mas a relação do avô com o filho José Mendes não era das melhores: “Ele tomou raiva do meu pai por ele ter escolhido estudar em vez de cuidar dos negócios da fazenda”. Já os avós maternos eram mais simples: Ivo Rodrigues Moreira e Amélia de Almeida Moreira. Os dois se divorciaram e o pai levou a filha Maria Madalena para a casa de familiares, para ela estudar, lembra-se Zulma.

 

A vocação

De acordo com Haydée Ferreira, José Mendes sempre desejou que o filho se tornasse padre: “Quando mamãe estava grávida, papai dizia: ‘Nosso filho vai ser homem e vai ser padre’. Durante a gravidez, papai teve febre espanhola e foi para a fazenda do meu avô. Padre Nélson nasceu e ele pediu para vê-lo, ainda que de longe. Ele disse: ‘Se Deus quiser eu quero ver essa mãozinha um dia fazendo a elevação do cálice e da hóstia’. Já mamãe dizia: ‘Deixa, ele vai ser médico, doutor, ou um jovem como outro qualquer’”. Em uma carta escrita em 20 de março de 1962 por Maria Madalena, a dona Mariquinhas, sobre a infância, o período de seminário e ordenação, ela fala da vocação do filho Nelsinho, como ela o chamava: “Com cinco anos mais ou menos, Nélson revelou vocação para o sacerdócio e dizia sempre: ‘Eu quero ser padre’”.

O menino Nélson sempre gostou de ir à igreja e seguia à risca os ensinamentos do padre: “Mamãe foi a uma Semana Santa em Madre de Deus e ele foi com ela. Assistiu a todas as procissões. Pediu para levá-lo bem perto do ‘Papai do Céu’. Falava: ‘coitadinho do Papai do Céu’. Quando as comadres iam visitar mamãe e levavam os filhos, Nélson chamava todos para a sala de aula e dizia que ia dar o catecismo. Foi crescendo e todo domingo fazia festa, encenava procissão, apanhava as flores do jardim, forrava o móvel e colocava santos em cima, vestia a camisola, colocava as outras crianças com vela na mão, fazia sermão em cima do cupim e falava de moral. E olha que nem falar direito ele sabia”, contou Haydée. Dona Mariquinhas diz na carta que o menino Nélson levava a brincadeira com seriedade: “Certa vez encontrei-o chorando, porque a irmãzinha Jandira, menor que ele, não sabia responder ‘Et cum spiritu tuo’ diante de um altarzinho que ele havia improvisado num banco da sala de entrada, onde brincava de celebrar missa”.

Dona Mariquinhas se lembra de uma brincadeira que já revelava os primeiros sinais da vocação sacerdotal de Nélson: “Saíram em ala cantando ‘No céu, no céu, com minha mãe estarei...’. De repente emudeceram, houve completo silêncio. Levantei-me e fui ver onde estavam. Encontrei-o em cima de um pequeno barranco pregando o sermão e dizia: ‘Meus filhos, é pecado as mulheres andarem de vestidos curtos. É pecado andarem com vestidos sem manga’. Quando me viu ficou muito desapontado. Retirei-me logo para não atrapalhar o brinquedo. Não pude acabar de ouvir, porque tinha visita em casa. O que mais admirei foi ver que todos estavam silenciosos e o ouviam atentamente. Foi este o primeiro sermão que o cônego Nélson pregou”.

As brincadeiras e atitudes do menino Nélson também chamavam a atenção dos religiosos, de acordo com Haydée: “Quando ele começou a andar teve uma Crisma em São Francisco de Assis do Onça, com a presença de um frade Franciscano: desde a hora que ele viu o menino, logo se apaixonou. Chegou a pedir o Nélson pra ele. Mamãe disse brincando que daria. Ele levou a sério e disse que o mandaria para a Holanda”. Em sua carta, a mãe lembra-se de uma festa de São Sebastião, ocasião em que um dos padres, Constâncio, disse para a família: “Não deixe este menino brincar com maus companheiros, porque ele vai ser padre”. Ela completa: “Isso pareceu-nos mais tarde uma profecia, porque não havíamos dito nada para ele sobre a vocação do Nélson”.

Padre Nélson sempre foi muito inteligente, conforme suas irmãs, e estudou os primeiros anos da escola com a própria mãe: “Quando terminou o quarto ano do primário disse para mamãe que gostaria de ser padre. Lembro-me que um padre holandês, Pedro Onclin, vigário da paróquia de Madre de Deus de Minas, gostava muito do Nélson e o levou para morar com ele. Nélson morou cerca de dois anos com o padre Pedro, que o iniciou no aprendizado do Latim. Ele batia o sino, abria a igreja e obedecia à risca o padre Pedro”, disse Haydée. Segundo a irmã, Nélson não se interessava em namorar e preferia os livros, mas era obrigado pelos pais a acompanhar as irmãs em algumas festas: “Gostávamos de ir ao baile e o papai mandava Nélson nos levar. Ele nos esperava do lado de fora do salão e não gostava de ir. As pessoas pelejavam para ele entrar, mas ele não ia. Quando ele mostrava o relógio, a gente tinha que ir embora”, contou sorrindo.

 

O sonho de se tornar padre torna-se realidade

Tudo o que mais quis durante a infância se tornou possível para Nélson quando ele deixou Piedade e foi para Mariana (MG) estudar no Seminário, em 1927. Dona Mariquinhas assim escreveu sobre esse momento na vida do filho: “Tudo foi arrumado com prazer e entusiasmo. Na hora da partida, houve chuva e sol em meu coração”. De acordo com relatos das irmãs, a família passou por grandes dificuldades, mas os pais fizeram de tudo para manter o filho na cidade histórica mineira. Dona Mariquinhas confirma em sua carta: “Tudo parecia correr bem, quando meu esposo começou a desanimar. Seus negócios estavam fracassando e, além de tudo, tínhamos mais filhos para educar. Eu, sempre firme na minha fé e confiante na vocação de meu filho, dizia: ‘Ainda que seja preciso esmolar, ainda que custe gotas de meu sangue, meu filho há de ser um padre’”.

Haydée lembrou-se de que quando era moço, no seminário, todos diziam que ele era bonito: “Ele tinha o cabelo preto, muito bonito, tem até uma história de que uma moça elogiou seu cabelo e então ele raspou e nunca mais deixou crescer. Acho que isso já foi em Resende Costa”. Já no seminário, quando cursava o sétimo ano, o seminarista Nélson ficou doente durante as férias e chegou a perder quatro meses de estudos: “Chegou em casa magro e abatido, definhava dia a dia, o seu estado de saúde era assustador!” Dona Mariquinhas relatou que o médico Freitas Carvalho, que estava em Piedade apenas de passagem, receitou alguns medicamentos para Nélson e o aconselhou passar um mês na fazenda do avô: “Apesar de haver usado os medicamentos receitados, não obteve nenhuma melhora. No dia em que regressou da fazenda quis Deus que Dr. Freitas chegasse em nossa casa. Receitou novamente; desta vez o nosso seminarista recuperou a saúde, graças a Deus! Não pôde voltar para Mariana em março, só o fez em abril, mas não perdeu o ano.”

Zulma também se lembra das dificuldades enfrentadas pela família para manter Nélson no seminário: “Em seu penúltimo ano no seminário, papai já não tinha condições de pagar e foi pedir ajuda ao vovô na fazenda, mas ele não quis ajudar. Disse que se não pode pagar o colégio, que retire o menino de lá. Mamãe então fez cartas de cobrança para os clientes do nosso armazém que havia falido e padre Nélson foi entregá-las. Com o dinheiro que recebeu, viajou até Mariana. De lá mandou uma carta à mamãe dizendo que todos os colegas pagaram o carregador de suas malas e ele não tinha dinheiro para pagar, mas com muito prazer e alegria carregou sua mala nas costas”. Haydée completa: “Vovô falava que era bobagem bancar Nélson no seminário, mas vovó fazia o que podia, escondida do marido. Mamãe também, fazendo até biscoitos para vender”.

 

Haydée contou ainda o esforço de padre Nélson para se manter no seminário: “No momento de sua ordenação, nossa família estava apertada financeiramente e ele precisava de alguns materiais. Havia cartas dele relatando que virou a noite remendando a batina”. Dona Mariquinhas confirma: “Em uma de suas cartas dizia: ‘Passei o tempo todo do recreio colocando um remendo na minha batina. Quando eu for para casa, a senhora verá como ficou bom’. Em outra dizia: ‘Hoje na hora do recreio consertei o meu sapato; pode durar mais um pouco, até que papai mande dinheiro para comprar outro’”.

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