Peregrinos estão perdendo terreno para turigrinos no Caminho de Santiago?

XV Encontro de Hospitaleiros discutiu rumos do Caminho Português, em Pontevedra, Galiza


Cultura

José Venâncio de Resende0

Hospitaleiros do Caminho Português, no encontro de Pontevedra.

“Manto com esclavina com conchas de vieira, bolsa de viagem de couro a tiracolo decorada com concha de vieira, chapéu de abas alargas para protecção do sol e da chuva com concha de vieira, um longo bordão para apoio e defesa do peregrino contra ataque de animais e tendo atada uma cabaça para levar uma quantidade de vinho ou de água que lhe davam nos mosteiros e hospitais. A concha de vieira é a intersigna peregrinorum que identificou e identifica os peregrinos do Caminho de Santiago” (sermão Veneranda dies, do Liber Sancti Jacobi, com a descrição da vestimenta do peregrino e seu significado, no início do século XII).

O peregrino do Caminho de Santiago ganha uma nova concorrência – o “turigrino” – sintonizada com o mundo globalizado dos negócios. O número de peregrinos/turigrinos saltou de 179,9 mil em 2004 para 262,5 mil em 2015, segundo a Oficina do Peregrino de Santiago de Compostela. Um crescimento consistente nos Caminhos Francês e Português. O número de peregrinos/turigrinos do Caminho Francês é muito superior, mas o Caminho Português tem crescido mais.

Mas é uma realidade que não agrada todo mundo, especialmente os defensores da preservação das origens.

Paróquias, ordens religiosas, confrarias, associações jacobeas e muitos peregrinos que se tornam voluntários tem feito o possível para que se mantenham a essência e a espiritualidade do Caminho de Santiago, lembrou o padre Javier Porro Martinez, paróco da Basílica de Santa Maria de Pontevedra, na conferência inaugural do XV Encontro de Hospitaleiras e Hospitaleiros do Caminho Português de Santiago, realizado em 10 de setembro em Pontevedra (Espanha).

O religioso reconhece que as administrações públicas tem feito infraestruturas e desenvolvido planos culturais e de promoção “dignos de elogio”. Também assinala que “muitos particulares” tem descoberto em torno do Caminho e dos peregrinos “uma possibilidade de ganhar a vida com um trabalho honrado”.

Porém, junto das estatísticas de número de peregrinos, da logística e da segurança do Caminho, cada vez aparece com mais força o impacto econômico que este provoca em cada povo e cidade por onde atravessa. Parece que é o que mais preocupa algumas administrações e os empresários, alerta padre Javier.

Por isso, hoje mais que nunca, é necessário recordar que não se pode perder a essência da peregrinação, que não é a meta nem o Caminho, mas “creio que é Deus e a pessoa”, lembra o religioso. “Em uma palavra, a economia, a legislação, a coisa pública devem estar a serviço das pessoas, e não o contrário, tal como nos recorda a Doutrina Social da Igreja.”

Em sintonia com o Papa Francisco, padre Javier ressalta a importância de viver as obras corporais e espirituais de misericórdia. Mas adverte contra a divisão radical entre corpo e espírito. “Falamos de obras de misericórdia que tocam a pessoa em sua totalidade: corpo, psicologia e espírito.” Por isso, o religioso considera que seria um erro dar de comer e beber, deixar secar a roupa e permitir a reabilitação do peregrino, mas não escutá-lo, consolá-lo, confortá-lo e animá-lo.  E propõe que esta lista, meramente indicativa, seja atualizada e adaptada aos tempos e às novas misérias corporais e espirituais da humanidade.

Padre Javier disse estar convencido de que muitos peregrinos – não os turigrinos – fazem o Caminho depois de algum tipo de perda, seja familiar, afetiva ou laboral. Daí por que considera importante que o hospitaleiro esteja preparado mais para ouvir do que falar pois “temos dois olhos, dois ouvidos e uma boca”.

Massificação

Parece que no Caminho de Santiago os turigrinos começam a ganhar terreno em relação aos peregrinos. O Caminho Francês deve atingir 170 mil peregrinos/ano, o que caracteriza uma saturação, disse ao JL Celestino Lores, presidente da Fundação Caminho Português de Santiago, promotora do Encontro de Hospitaleiros. “É como uma praia movimentada. Por mais que a infraestrutura seja suficiente, chega uma hora em que a praia não comporta mais gente. A massificação (restaurantes, comércios locais, shows etc.) está chegando ao Caminho de Santiago.”

Ao não comportar mais peregrinos, descaracterizam-se a hospitalidade e a essência, explica Celestino. O problema do Caminho Francês (pouco mais de 800 quilômetros) agrava-se últimos 100 quilômetros, já no território da Galiza. O Caminho Francês tem tanta empresa que a concorrência é acirrada, tratando o peregrino como turista.

Celestino defende que a rede pública de albergues possa aceitar reservas para evitar corrida dos peregrinos pelo Caminho para poder ter acesso a “uma cama”. Ele cita como exemplo o caso de Pontevedra: dos 50 mil peregrinos que vão passar pela cidade este ano, 14 mil seriam atendidos no albergue público. “A rede pública teria o papel de equilibrar o preço.”

Já o Caminho Português (com 616 quilômetros) cresce 15 a 20% ao ano, especialmente da cidade do Porto para cima (cerca de 240 km), devendo chegar aos 50 mil peregrinos, distribuídos também pelas variantes (da costa, do litoral e espiritual). O êxito deve-se principalmente às boas infraestruturas, à hospitalidade dos povos português e galego, à boa rede de comunicação (por exemplo, as empresas aéreas low cost com base no Porto e em Santiago de Compostela), à saturação do Caminho Francês (que “empurra” o peregrino para esta opção) e ao fato de que pode ser percorrido praticamente o ano inteiro.

O Caminho Português ainda tem muito potencial para crescer porque, diz Celestino, desde que a infraestrutura seja ampliada gradativamente e o crescimento/integração da rede de hospedagem (associações de albergues, albergues públicos e hoteis privados) continue a ocorrer de maneira racional. “Nós temos a possibilidade de poder planejar. No Caminho Francês, existe a visão tradicional de que não se pode fazer reservas nos albergues. No Português, temos uma visão de futuro e tempo para nos anteciparmos.”

Outra vantagem, apontada por Celestino, é a proximidade do mar, o que permite não apenas optar por uma variante como também alternar as rotas a cada ano (é bom lembrar que a grande maioria dos peregrinos faz o Caminho de Santiago mais de uma vez). Outra vantagem, ainda, é que o trajeto do Caminho Francês leva cerca de mês para ser percorrido, enquanto que o Caminho Português (o trecho entre o Porto e Santiago de Compostela) pode ser feito em aproximadamente nove dias.

Mas o crescimento do Caminho Português encerra riscos, aqui citados por Celestino. A corrida para encontrar albergues mais baratos leva o peregrino a sair de madrugada ou pegar transporte público ou táxi. Isto acaba por estimular a figura do turigrino, desvirtuando a essência do Caminho. Uma concorrência cada vez mais maior, cuja ordem de chegada (a um albergue de associação ou público) não é justa ou democrática, observa Celestino. “Um jovem leva vantagem sobre uma pessoa idosa, por exemplo, porque simplesmente consegue chegar primeiro.”

A saturação no Caminho Francês foi de tal ordem que é comum encontrar, em alguns trechos,  placa de “proibido defecar”. Este é um indicativo, adverte Celestino, de que as autarquias (câmaras municipais) devem cuidar do Caminho Português, em todos os seus aspectos: segurança, limpeza, cuidado ambiental, higiene (fontes para beber água e banheiros), proteção do patrimônio histórico etc..

Encontros

Celestino Lores participou da coordenação dos 15 encontros de hospitaleiros de Pontevedra, que discutiram  várias ideias – hoje realidade – como cobrança de valor fixo em albergues públicos e padronização da sinalização oficial do Caminho. “Considero que assisti a toda a história mais recente do Caminho Português”, resume. A primeira vez que percorreu o Caminho Português foi em 1965 aos 14 anos de idade.

Repetindo a receita de encontros anteriores, a organização do evento deste ano abriu espaço para comunicações e debates de representantes de associações responsáveis por albergues ou atividades relacionadas ao Caminho Português.

Domingos Carneiro, presidente da Associação Espaço Jacobeus (associação portuguesa agregada à Confraria de Santiago e que presta apoio aos peregrinos), informou que a entidade se encontra envolvida na candidatura dos itinerários do Caminho de Santiago a Patrimônio da Humanidade. E lembrou que é preciso melhorar a sinalização e a informação sobre, por exemplo, as fontes de abastecimento ao longo do Caminho.

Antonio José Pires, do Albergue de São Pedro de Rates, lembrou que é preciso se preparar para 2017 - ano do centenário das aparições em Fátima - quando haverá grande número de peregrinos, fazendo o caminho inverso de Santiago para Fátima.

A “Variante Espiritual” – a chamada “Rota Jacobea Marítima”, que inclui a possibilidade de se efetuar uma das etapas por barco entre Vilanova de Arousa e Pontesores –, foi o assunto polêmico do encontro, porque alguns peregrinos reclamaram pelas redes sociais do preço de 19 euros cobrado pela travessia de cerca de 30 km. Vários dos representantes de albergues presentes concordaram que o valor era alto, mas o responsável pelo barco, Santiago Domingues, justificou o preço com custos de impostos, seguro e combustível, além da baixa demanda.

Em sua intervenção, Abel Ribeiro, do Refúgio Senhora da Hora, de Matosinhos, lembrou que há 10 anos, na sua primeira peregrinação a Santiago de Compostela, gastara 110 euros – hoje, gasta 600 euros. “Não estamos lidando com turistas, mas com peregrinos. Isto não é turismo religioso, é peregrinação.”

Peregrinação que deve valorizar a hospitalidade como a verdadeira promoção do Caminho de Santiago, segundo Lúcio Lourenço, do Albergue Cidade de Barcelos. “O Caminho de Santiago é, principalmente, uma comunhão entre pessoas diferentes, com o mesmo propósito.”

Link relacionado: 

CAMINHO DE SANTIAGO: três albergues, três visões, um objetivo - http://www.jornaldaslajes.com.br/integra/caminho-de-santiago-tres-albergues-tres-visoes-um-objetivohellip-/2009/

 

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário