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Carta de Lisboa (2024): Mundo Trumpista e novos desafios

19 de Novembro de 2024, por José Venâncio de Resende

Caro leitor, 

Mais um ano chega ao seu final e percebo que ainda não nos livramos totalmente dos resquícios da pandemia. Tenho acompanhado, principalmente nas páginas da revista The Economist, da qual sou assinante, que as finanças públicas dos países em geral ficaram bastante deterioradas nos últimos anos, com o setor público mais endividado, o déficit fiscal em crescimento e a qualidade dos serviços públicos cada vez pior. Por outro lado, o cobertor está cada vez mais curto. A chamada “taxa do pecado” (imposto sobre bebidas alcoólicas, cigarro, combustível fóssil, bebidas doces etc.), por exemplo, parece que chegou à exaustão inclusive por causa da mudança de hábitos da população e da expansão do carro elétrico. Mas a voracidade e a criatividade dos governos são infinitas, a ponto de se justificar a legalização da maconha pela necessidade de aumentar a receita de imposto; ao mesmo tempo, já se defende a cobrança de imposto aos motoristas por quilômetro rodado para abarcar o carro elétrico, além do estímulo às apostas esportivas com o mesmo propósito de engordar os cofres públicos. Já ouvi alguém no Brasil defender que se crie um imposto sobre o eficiente milionário crime organizado.

Porém uma visão nova (talvez nem tão nova assim) tem vindo à tona diante do dilema dos governos entre cortar despesas e aumentar o endividamento e os impostos diretos (renda, propriedade, empresas) para fazer frente a esta situação. A ideia em circulação passa por duas vertentes: 1) em vez de simplesmente cortar impostos a torto e direito como defendem alguns (Donald Trump, por exemplo), melhorar os canais de transferência da arrecadação de impostos em vigor para serviços públicos como educação, saúde, habitação, transição energética e aposentadorias; e 2) em caso de necessidade de aumento de imposto, priorizar o imposto sobre valor agregado (da sigla em inglês VAT), mesmo que isto tenha de ser feito gradualmente para evitar impacto imediato na inflação. Em países nórdicos, por exemplo, o VAT já chega a 25%. É algo para pensarmos!

É evidente que, com o sr. Trump no poder, nada disso vai acontecer nos Estados Unidos, uma vez que seu plano vai no caminho contrário, ou seja, reduzir o imposto de renda, principalmente das pessoas de maior renda, e a taxação sobre as empresas em bilhões de dólares, o que deve reduzir a receita de impostos e aumentar o já alto déficit público e, consequentemente, a dívida pública para cobrir o rombo.

Já no caso brasileiro, o risco é que, com a reforma tributária (afinal, em que pé está a tramitação do projeto de lei no Congresso?), o VAT atinja um percentual muito elevado (próximo aos 30%), por embutir os subsídios escandalosos a setores privilegiados da sociedade. 

Isolacionista e protecionista

Antes de falar do sr. Trump e seu futuro governo, gostaria de fazer alguns alertas. Em primeiro lugar, aqui em Portugal e na Europa em geral, o fantasma da terceira guerra mundial está sempre presente. Daí a ênfase em questões como a agressão russa à Ucrânia que, aparentemente, pouco interessam aos brasileiros. Pura ilusão!

Outro alerta é sobre a imprevisibilidade do sr. Trump; nem tudo que ele diz deve ser considerado “ao pé da letra”. Mas ele tem a conivência dos seus eleitores por mais mentiras que diga. Pelas indicações dos primeiros nomes da equipe, dá para se ter uma ideia de que será um governo disruptivo, focado em desmantelar a “burocracia profissional”, estimular o “instinto animal” dos homens de negócios (amigos e aliados), adotar uma “guerra comercial” contra o mundo (usar tarifas inclusive para extrair concessões de países inimigos e amigos) e espalhar a desinformação. Um detalhe importante: será um Trump mais experiente e mais ágil ao compor a estrutura de governo (independente de os nomes serem ou não polêmicos), fazer a transição e colocar logo em prática os seus planos e suas crenças. Membros da equipe inicial (na expectativa de que sejam todos aprovados pelo Senado) serão descartáveis sempre que contrariarem os desejos do chefe.

Uma questão intrigante é a existência de mais de dois meses de intervalo entre as eleições e a posse do novo presidente, o que no caso do sr. Trump se presta a criar conflito de gestão (entre o presidente atual e o presidente eleito que já age como se estivesse em função) e confusões como a interferência informal do todo-poderoso Ellon Musk na política externa (mesmo com um secretário de Estado em plena atividade e outro já escolhido, neste caso o senador Marco Rubio). Isto tem implicações graves em questões como as negociações para o fim da agressão russa à Ucrânia (terá o presidente Joe Biden ouvido o sr. Trump antes autorizar o uso de armas de longo alcance na guerra?) e o desfecho do conflito no Oriente Médio entre Israel e o Irã (por meio dos seus “proxies” Hamas, Hisbulah etc.). O sr. Trump (que se mantém calado ante as últimas decisões do sr. Biden e do sr. Putin) está na expectativa de que tudo não passe de retórica e que, ao tomar posse em 28 de fevereiro de 2025, possa dizer que livrou o mundo da terceira guerra mundial.

O sr. Trump tem a “faca e o queijo nas mãos”, com a vitória unificada (controle das duas casas legislativas e maioria dos governos estaduais) e uma Suprema Corte de maioria conservadora. Assim, espera ter o caminho livre para colocar em prática sua política isolacionista e protecionista, baseada em desregulação e impostos/tarifas baixos no âmbito doméstico. Extra fronteira, a guerra fiscal (imposição de tarifas) não ficará limitada à China, devendo castigar aliados europeus (como Alemanha), asiáticos e o vizinho México, todos grandes exportadores para os Estados Unidos e com balanças comerciais superavitárias. A menos que, na sua visão mercantilista, o sr. Trump queira usar as tarifas para forçar acordos que abram espaço para as exportações norte-americanas. Fico a imaginar, por exemplo, a Europa que prioriza as energias renováveis sendo inundada por petróleo americano (especialmente gás natural liquefeito ou LNG)!

Isto porque deve ganhar impulso a produção interna dos combustíveis poluentes (petróleo, carvão e gás natural), bem como a fabricação de carros a combustível fóssil e a indústria tradicional poluidora, geradoras de centenas de empregos, em prejuízo da política federal de estímulo às energias renováveis. O sr. Trump vê a crise climática como uma “farsa” e, devido ao seu ceticismo, tende a abandonar o Acordo Climático de Paris num momento em que, pela primeira vez, a temperatura média global atinge 1,5°C acima do período pré-industrial. Apesar da maioria republicana de governadores, acredita-se que a autonomia dos estados federativos será contrapeso a esta visão, assim como o dinamismo da economia principalmente de base tecnológica. De qualquer forma, o impacto será geral na medida em que todos os esforços de controle das emissões com gases poluentes sofrerão um duro golpe. Aqui também há sinais contraditórios por causa dos interesses do sr. Musk na produção de carros elétricos (da Tesla) tanto nos Estados Unidos quanto na China.

Aliás, estou na expectativa de ver como será o governo de egomaníacos narcisistas e homens com pouco sentido de Estado, como são o sr. Trump e o multiempresário Elon Musk (dos ramos financeiro, espacial, de carros elétricos, inteligência artificial, mídia social), o “super gênio” (na definição do próprio presidente-eleito). Uma certeza é de que o sr. Musk (que vai co-liderar o novo Departamento de Eficiência Governamental orientado para cortar gastos e “desmontar a burocracia governamental”) será um dos grandes ganhadores com a desregulamentação, devendo multiplicar os contratos bilionários com o governo norte-americano no Ministério da Defesa e na NASA (além dos bilhões de dólares que já ganhou apenas com a vitória do sr. Trump). O sr. Musk poderá beneficiar-se, ainda, com a imposição de tarifas aos produtos chineses (inclusive carros elétricos) e a eliminação dos subsídios “verdes” que darão vantagem aos veículos da Tesla em relação aos concorrentes. E o “X” (ex-Twitter) poderá tornar-se a principal plataforma para promover a ideologia trumpista. Mas não tendo monopólio em suas áreas de atuação, o sr. Musk espera tirar o máximo de vantagem de sua influência, como por exemplo viabilizar o seu veículo autônomo (sem motorista) e manter o negócio de carros elétricos da Tesla na China.   

Um dos efeitos da guerra fiscal poderá ser a realocação de investimentos de outros países para os Estados Unidos, a fim de aproveitar os incentivos internos (redução de impostos e estímulo aos empreendimentos locais) e fugir das tarifas externas. Com isso, o dólar tende a se valorizar prejudicando países como o Brasil.

Porém, um fator de perturbação na economia doméstica, para além da questão humanitária, será a maneira como o sr. Trump vai cumprir sua ameaça de deportação em massa de imigrantes (e seus familiares) considerados “ilegais”. Uma expulsão de imigrantes trará danos imprevisíveis. Como, a não ser pela legalização, conciliar o aperto à imigração irregular com a garantia de oferta de mão-de-obra (em setores como agricultura, hotelaria e construção civil) para evitar escassez de trabalhadores e o resultante aumento dos custos de produção? Veremos!

Respirar fundo!

Guerra às importações de mercadorias e ao combate às mudanças climáticas em lugar das guerras na Ucrânia e no Oriente Médio. Quem deve respirar fundo com a promessa do sr. Trump é a Europa que será duplamente atingida: obrigada a aumentar os gastos militares com segurança (por exemplo, criando a própria indústria de defesa) para depender menos dos norte-americanos e equilibrar a balança comercial (superavitária) com os Estados Unidos; e aqui entra o fator Musk na área tecnológica e na inteligência artificial. As primeiras escolhas do sr. Trump para o seu governo (inclusive negacionistas) sinalizam menos compromissos em defesa com Europa/Ucrânia e foco total na China, tanto comercial quanto militar e tecnologicamente. Na Europa, já há quem defenda a redução da dependência militar dos Estados Unidos e uma aliança estratégica com a China na área comercial; a mesma China que transformou a questão climática num grande negócio, respondendo por quase 90% dos investimentos mundiais (378 bilhões de dólares) em produção de turbinas, painéis solares, carros elétricos e outras tecnologias verdes, no período 2018-2023, de acordo com a BloombergNEF.

Depois de várias crises seguidas, a Europa está mais frágil perante a volta do sr. Trump, e os desafios são imensos. Foram as crises da migração, do Brexit, da pandemia e da invasão da Ucrânia; e, para além das catástrofes climáticas cada vez mais frequentes, agora surge o fantasma da guerra fiscal e do abandono à própria sorte. E aqui, onde os interesses políticos e empresariais se confundem, pode estar surgindo uma outra guerra. O sr. Musk, de cujo Starlink os militares ucranianos dependem e que fala regularmente com o sr. Putin, implicou com a regulamentação das tecnológicas e das mídias sociais pela União Europeia, considerando que qualquer restrição ao seu “X” pode ser considerada censura. E ainda há a decisão da Europa de impor tarifas aos carros elétricos importados da China, inclusive os fabricados pela Tesla do sr. Musk.

Entre os maiores desafios da era trumpista, está a possibilidade real de um acordo com a Rússia do sr. Putin, que force a Ucrânia a ceder parte de seu território sem a garantia de entrada do país na NATO (OTAN). Tanto pode ser na forma de simples anexação como de criação de uma zona neutra (tampão) ou até mesmo de uma república independente aliada da Federação Russa. Ou, de repente, nada disso já que o sr. Trump é imprevisível. Dessa forma, não apenas o fantasma do sr. Trump, mas também o do sr. Putin, ronda a Europa.

50 anos

Com a Europa cada vez mais desunida, cada país tende a cuidar dos próprios interesses. É o caso de Portugal que espera manter a tradição de boas relações com os Estados Unidos, desde a independência norte-americana, tanto em termos de comércio quanto de defender os interesses da sua vasta diáspora na América. 

Portugal celebrou 50 anos da Revolução de 25 de Abril, apelidada de Revolução dos Cravos, fruto do movimento político e social que, em 1974, depôs o regime ditatorial do Estado Novo, vigente desde 1933, e implantou o regime democrático no país. A população comemorou com muitas festividades cívicas por todo o país, principalmente nas maiores cidades.

Os eventos acabaram contaminados por uma declaração polêmica do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, sugerindo que Portugal reparasse erros ou crimes cometidos durante a era colonial, sugerindo o pagamento de reparações pelos erros do passado. Temos de pagar os custos.” Esta declaração gerou muita polêmica e deu gás à direita nacionalista portuguesa, ao mesmo tempo em que não entusiasmou muito ex-colônias as africanas. Teria Portugal recursos para este tipo de indenização cujo valor é incalculável?

Mas passados 50 anos, há muito o que fazer dentro do próprio país; alguns chegam mesmo a dizer que, depois do ingresso na União Europeia, Portugal não teve mais objetivos claros. Maior ironia não há do que os políticos estarem a discutir durante os mesmos 50 anos a construção de novo aeroporto em Lisboa. Mesmo agora que o local foi definido, não há certeza do tempo que as obras vão demorar devido aos elevados custos e ao fato de o governo não ter recursos para o investimento e a União Europeia não mais priorizar este tipo de infraestrutura.

Da mesma forma, há décadas de discussão interminável em Portugal sobre as bitolas europeia e ibérica, que somada à falta de investimentos, contribui para o atraso da rede ferroviária, quer pela obsolescência e insuficiência de linhas (por exemplo, não há comboios ou trens para Viseu-Lamego ou para o Alentejo mais ao sul) quer pela falta de integração com os outros países do continente. Nessas últimas décadas, Portugal perdeu a oportunidade de aproveitar os fundos europeus para financiar a modernização e ampliação da rede ferroviária (obsoleta e insuficiente), monopólio da estatal Comboios de Portugal (CP), bem como a sua integração com o restante da Europa. Particularmente, numa época em que se discute a substituição dos voos de curta duração pelas viagens de comboio que é um sistema de transporte limpo e adequado aos tempos de combate à crise climática.

Grande Israel

O sonho da direita religiosa, liderada por Benjamin Netanyahu, é obter luz verde do sr. Trump para seu objetivo expansionista de criar o Grande Israel, com a anexação de Gaza e da Cisjordânia. Menos provável (embora não impossível) é o apoio americano ao governo israelense para atacar as instalações nucleares do Irã e mesmo forçar a queda do regime dos aiatolás.

Será que o sr. Trump forçará Israel a retomar os acordos de Abraão para normalizar as relações com os seus vizinhos árabes e aliados dos Estados Unidos (apesar do distanciamento, principalmente da Arábia Saudita, depois do início da guerra em Gaza) e assim isolar o Irã? Ou vai intensificar a política de sanções econômicas para forçar o regime dos aitolás a desistir do seu programa de armas nucleares? Qualquer que seja a escolha, parece que o futuro da Palestina, como Estado, ficará “fora do mapa”, pelo menos nos próximos tempos; a menos que Trump surpreenda!

BRICS e a Rússia

A China tornou-se o inimigo “número um” dos Estados Unidos, posição esta assumida por republicanos e democratas, mas sobretudo pelo sr. Trump. São duas potências mundiais em luta entre si por hegemonia geopolítica e pelo controle da agenda econômica, tecnológica e militar.

A China lidera o BRICS, uma “aliança antiocidental” de países emergentes do qual a Rússia e o Brasil são partes integrantes e ativas. Por mais que se queira dizer que o BRICS tem como foco a preocupação econômica e geopolítica, não é possível ignorar que ultimamente o bloco tem respaldado o sr. Putin – que invadiu o território da Ucrânia há quase três anos e continua a agressão àquele país – contra o “isolamento” promovido pelo chamado “ocidente”. 

Talvez este seja um momento de o governo brasileiro refletir sobre a sua política externa, devolvendo ao Itamarati o seu papel histórico-diplomático no tratamento dos assuntos de interesse nacional, sem subserviência ou prestação de vassalagem a qualquer um dos dois países hegemônicos (China ou Estados Unidos).

Leitura

Um dos melhores livros que li este ano foi a biografia de Lorde Thomas Cochrane (Casa Editorial), de George Ermakoff. Cochrane foi um almirante da Marinha Britânica, que lutou nas Guerras Napoleônicas, amealhando “uma riqueza considerável com os prêmios das presas de guerra”. Foi injustiçado na carreira militar devido ao seu caráter rebelde. Elegeu-se deputado para a Câmara dos Comuns onde fazia discursos contra os privilégios de políticos e de membros do almirantado, ganhando com isso “o ódio e, quiçá, a vingança” dos seus colegas. Tentou, sem sucesso, uma reforma política que reduzisse o controle dos grandes proprietários de terra sobre os distritos eleitorais. Talvez por tudo isso tenha sido acusado de fraude na Bolsa de Valores, o que nunca foi comprovado. Mas perdeu o mandato parlamentar, o posto de oficial da Marinha e foi preso.

Fugiu da prisão e aceitou combater nas guerras de libertação do Chile, do Peru e do Brasil. “No Chile, seu nome é reverenciado como um dos heróis de sua Independência”; No Brasil, “seu nome caiu em total esquecimento”. De volta ao seu país, recebeu o perdão do rei William IV, tendo sido reincorporado à Marinha com a patente de contra-almirante. Mas Cochrane foi mais importante do que tudo isso.

Foi “um visionário”, na visão do autor que apresenta três exemplos de suas várias ideias: aposta nos navios a vapor, porque sabia que logo substituiriam os de vela; pioneirismo no asfaltamento de uma rua de Westminster (atualmente, o asfalto é o pavimento mais comum no mundo); e sua ideia, em 1851, de se criar, na Jamaica, uma instituição de ensino superior para negros que recebesse alunos de todas as colônias britânicas do Caribe (atual Cheney University of Pennsylvania).

Importante observar que, séculos depois, com a crise climática, o asfalto é cada vez mais questionado por provocar a impermeabilidade do solo. E o carvão é condenado por ser altamente nocivo ao meio ambiente pelo alto teor de emissões de dióxido de carbono; tanto que em setembro deste ano o Reino Unido fechou a sua última usina de energia a carvão, um dos símbolos da Revolução Industrial. 
  

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