Considerando a escrita tradicional por meio do lápis ou caneta (principalmente) e a folha de papel, as pessoas estão escrevendo menos. O ato de escrever vem sendo superado pelo uso do computador, mas ainda há quem se mantenha fiel ao hábito de fazer suas anotações usando letra bem pessoal, muitas vezes inconfundível. E mais, há aqueles que se preocupam com a estética da letra, a chamada caligrafia, termo que, em sentido etimológico, significa letra bonita.
É evidente que a beleza dos traços da escrita chama a atenção de muita gente e pode render até emprego ou trabalho, como queiram, para os que se tornam calígrafos profissionais. Mas simplesmente ser possuidor de uma bela caligrafia (sem pleonasmo, já que o termo “caligrafia” pode significar somente letra) não é garantia de nada. Isso quer dizer que, intelectualmente falando, ninguém é superior ou inferior pelo desenho das letras que produz. Sigmund Freud, por exemplo, o pai da psicanálise, não se preocupava com a estética de seus manuscritos e foi um dos homens mais inteligentes que o mundo já viu. Da mesma forma, os chamados garranchos não podem refletir um nível avançado de inteligência.
Vista como uma característica individual, a letra passa a ser um problema quando é ilegível. Sabe-se que aqueles que não se fazem entender por palavras comprometem consideravelmente sua capacidade de comunicação. Em se tratando da palavra escrita, a situação só piora. O que vem prescrito em certas receitas médicas é quase indecifrável. O mesmo acontece em muitas provas e redações escolares. E o que não pode ser lido não é comunicado ou é comunicado de maneira indevida. E aí...
Estou me lembrando agora de um texto de Fernando Sabino, o “Macacos me mordam”, no qual um cientista de uma cidade do interior de Minas se vê às voltas com uma macacada que lhe fora enviada indevidamente. Como precisava fazer algumas inoculações em macaco, animal difícil de ser encontrado onde morava, recorreu aos préstimos de um colega residente em Manaus mandando-lhe o seguinte telegrama: “Obséquio providenciar 1 ou 2 macacos.”. Aconteceu que, em razão de um erro do telegrafista ao trocar “1 ou 2 macacos” por “1002 macacos”, o cientista mineiro acabou em apuros em razão da chegada de encomenda tão numerosa e saltitante.
Ficcionismo à parte, todas essas considerações me vieram à propósito de uma decisão tomada nos Estados Unidos relacionada à palavra escrita. Por deliberação do governo do estado de Indiana, as escolas ficam desobrigadas de ensinar a escrita cursiva (aquela em que as letras são emendadas umas nas outras), com a recomendação de que passem a se dedicar mais à digitação em teclados de computador. O mesmo deverá acontecer em outros estados americanos.
Em entrevista à VEJA, Mark Warschauer, professor da Universidade da Califórnia, afirma que “ter destreza no computador tornou-se um bem infinitamente mais valioso do que produzir uma boa letra”. E é verdade, mas pesquisas recentes na área da neurociência comprovam que a escrita de próprio punho provoca uma atividade significativamente mais intensa do que a da digitação na região dedicada ao processamento das informações armazenadas na memória, o que tem conexão direta com a elaboração e a expressão de ideias. É o que afirma matéria da citada revista. Segundo a mesma fonte, está provado também que o ato de escrever desencadeia ligações entre os neurônios na parte do cérebro que reconhece visualmente as palavras, o que contribui para a fluidez da leitura.
É impensável negar o valor e a força da tecnologia, aqui representada pelo computador, entre tantas funções, a de sucessor natural da máquina de datilografia. Não há também como deixar de reconhecer que tudo muda. Do registro escrito em pedra, pergaminho, papiro ou papel aos fantásticos computadores de mão, a história da humanidade é contada essencialmente graças à preservação da palavra escrita através dos tempos.
Entre todas as maneiras com que se constitui a escrita, destaca-se aquela que se constrói com traços únicos formando a nossa letra. E com todas as letras, é preciso dizer que, assim como o nome que assinamos, ela nos confere personalidade própria. E mais. Por trás das palavras que vamos desenhando no papel, levamos a expressão do pensamento e do sentimento aos próximos e distantes de nós no tempo e no espaço, com a identidade peculiar do que é escrito à mão.
A palavra escrita
11 de Novembro de 2011, por Regina Coelho