Voltar a todos os posts

Atentados ao português

17 de Outubro de 2015, por Regina Coelho

Ilustração: Elimar do Carmo

A imprensa nacional não tem poupado matérias sobre o pífio desempenho, nas provas de redação, de grande parte dos aspirantes ao curso superior nas mais concorridas universidades brasileiras. Do vestibular, então tido como processo exclusivo de seleção para a faculdade, ao atual e disputadíssimo Enem, a situação em nada mudou. Aliás, se antes apenas os tradicionais jornais e revistas de informação repercutiam em forma de comentários, críticas e exemplos o que os candidatos escreviam, agora a internet se encarrega também de propagandear a “burrice” desses alunos. Diante disso, leitores, ouvintes e telespectadores, todos “cultíssimos”, por sinal, se divertem com essas trapalhadas linguísticas. Acontece, porém, que, rigorosamente falando, essa situação não tem a menor graça e é injusta com esses jovens ridicularizados pelo baixo rendimento demonstrado nas provas que fazem.

Não cabem aqui aprofundamentos sobre essa questão, mas pensar que esses garotos todos não querem nada com os estudos e por isso fracassam é de um simplismo total. Ideia insustentável também é achar que eles têm de arcar sozinhos com a ignorância acumulada de toda uma nação ao longo dos tempos. O problema é mais complexo. Dizer que o Brasil ainda não consegue promover maciçamente uma boa educação de base a favor de seu público-alvo, que compreende as crianças e os adolescentes, ajuda a explicar esse incômodo quadro.

Nas mesmas mídias que destacam as deficiências críticas dos jovens candidatos ao Enem, tropeços em relação ao uso padrão do português são observados com certa frequência em textos produzidos por profissionais da palavra. É claro que há tropeços e tropeços. Muitos se devem sobretudo à pressa, fator característico nesse meio, e à consequente falta de releitura do material produzido. Outros são fruto do desconhecimento da própria língua e das manhas de construção de frase, comprometendo clareza e coerência do texto. Sobre esse último complicador, o trecho a seguir é exemplar: Ainda não tinha nascido quando a rainha Elizabeth II inaugurou o transatlântico Queen Elizabeth II em 1969. Esse período, por omissão do sujeito da primeira oração, diz que Sua Majestade inaugurou o navio antes de nascer. No caso, não sendo o sujeito o mesmo nas duas orações, é necessário explicitar quem não tinha nascido – Eu (ou você) não tinha nascido...

Muito comum em textos jornalísticos é a colocação equivocada de um termo na frase. Seguem abaixo alguns exemplos desse vacilo:

Familiares são avisados sobre mortes por SMS (título de um site de jornal sobre a queda do avião da Malaysia Airlines em 2014). Desse jeito, o texto diz que a causa da morte é SMS. Uma simples troca de posição de um termo devolve a clareza à frase: Familiares são avisados por SMS sobre mortes.

O MP de Pernambuco decidiu, por enquanto, não denunciar o sanfoneiro César Carvalho por lesão corporal leve à Justiça. O problema se repete aqui, pois o texto informa que a Justiça sofreu lesão. A vítima em questão é a ex-namorada do sanfoneiro. Dessa forma, a redação da notícia ficaria correta assim: O MP de Pernambuco decidiu, por enquanto, não denunciar o sanfoneiro César Carvalho por lesão corporal leve contra a ex-namorada.

O motorista de um caminhão embriagado envolveu-se em uma batida... Caminhão embriagado? Impossível. Assim a frase fica melhor: Embriagado, o motorista de um caminhão...

Por outros e óbvios motivos, os textos seguintes são um “primor”:

Carro capota com 4 pessoas e uma mulher.

E todos vocês que nos ligarem fazendo seus pedidos serão depositados aqui. (Padre da Rede Século 21 mostrando uma urna com papéis contendo nomes dos que fizeram ligação para o programa.)

O Corpo de Bombeiros recolheu hoje pela manhã nas águas do Capiberibe o cadáver de um homem completamente morto, visivelmente embriagado.

 

Como se vê, os atentados ao português não se restringem às redações do Enem, atingindo outros setores da sociedade letrada.

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário