“A língua trai. Num piscar de olhos, trocamos letras, confundimos significados, ignoramos flexões, pisamos concordâncias, esnobamos regências. Pior: organizamos as palavras de tal forma que nossas frases transmitem recados diferentes dos que pretendemos. Dá-se, então, o que Mário Quintana explicou: “A gente pensa uma coisa, escreve outra, o leitor entende outra, e a coisa propriamente dita desconfia que não foi dita”.
É o caso da faixa exibida em frente a charmoso salão de beleza unissex. Ansiosa por aumentar a clientela, a proprietária anunciou: “Corto cabelo e pinto”. O resultado foi o contrário do esperado. Os homens sumiram. As mulheres rarearam. O que houve? Concretizaram-se as palavras do poeta gaúcho.
O xis da questão é o “e”. A conjunção liga classes iguais: substantivo + substantivo (Maria e Paulo), adjetivo + adjetivo (bonito e elegante), pronome + pronome (eu e ele), verbo + verbo (trabalho e estudo). Os clientes leram dois substantivos (cabelo + pinto). Já imaginou? Ninguém quis correr riscos. Os senhores protegeram o pênis. As mulheres foram solidárias.
A pobre comerciante se deu conta da cilada. Arrancou a faixa com a mensagem ambígua. No lugar, pendurou esta: Corto e pinto cabelo. Viva! O “e”, agora, liga dois verbos – cortar e pintar”.
Extraído da coluna de Dad Squarisi “Dicas de Português”, que o Estado de Minas publica às quartas-feiras e aos domingos, o texto acima me remete a um aspecto interessante da língua: a oralidade, o que faz valer muitas vezes aquela máxima de que “o que se diz (e o que se escreve também, acrescento eu) é o que se entende”. Decorrem daí incontáveis situações de mal-entendidos com certa dose de humor até.
O escritor mineiro Affonso Romano de Sant’Anna, por exemplo, já teve a oportunidade de repassar a seus leitores o caso de uma fiel que, segundo lhe contaram, rezava assim a ave-maria: “Ave, Maria, cheia de graça. O Senhor é convosco. Benditas suas avós entre as mulheres...” Ele também se lembra de ter caído na mesma armadilha. Isso porque quando era criança, afirma que costumava cantar assim, de maneira convicta, o seguinte trecho do Hino Nacional: “Verás que um filisteu não foge à luta...” Também tenho minha contribuição a dar nesse sentido. Criança como Sant’Anna, ia se aproximando o Natal. E em casa, como preparação para os festejos daquele período, músicas alusivas à data eram tocadas na radiola da família. Numa delas havia um texto que era recitado assim: “Natal é Jesus na cadência dos hinos, orando e pedindo por nossos destinos”. Naquela época, eu teimava, seriamente convencida do que ouvia, em recitá-lo assim: “Natal é Jesus na cabeça dos índios, orando e pedindo bonecos vestidos”.
Já recentemente, estive envolvida num episódio no mínimo curioso. Fui a uma oficina de eletrodomésticos em São João del-Rei levando um liquidificador para o devido conserto. Atendida por um jovem rapaz, fui encaminhada por ele a um outro lugar onde eu deveria ler na placa do endereço indicado a palavra “uálita”. Levei alguns bons segundos para decifrar aquele estranho nome como “Walita”, marca bastante conhecida no mercado (pelo menos para muitos), desde 2004 associada à Philips.
Verdadeira piada virou o trecho da música “Noite do prazer”, de Cláudio Zoli. O trecho original “A madrugada, a vitrola rolando um “blues”, tocando um B. B. King sem parar” foi transformado por semelhança fonética em “trocando de biquíni sem parar”. O nome do cantor e guitarrista americano simplesmente desapareceu na versão popular.
Existe ainda o que é dito com competência a exemplo de calça “jeans”, feira “hippie” e strip-tease, mas esbarra na escrita registrada assim: calça “dins”, feira “ripe” e “estripitismo”, alguns dos muitos casos que observei pessoalmente. É simples entender isso. Ler e escrever são habilidades posteriores à da fala, que ocorre de modo natural e intuitivo. A escrita é resultado de uma aprendizagem explícita e consciente. Em outras palavras, muito do que se fala por aí só é ouvido e repassado como chega aos ouvidos. Daí a ocorrência de manifestações linguísticas orais como levantar “a lepra” (a lebre), cordão “bilicado” (umbilical), certidão “de opa” (de óbito) e tantas outras.
Retomando a discussão sobre a língua, é preciso reconhecer que estamos todos, em maior ou menor escala, sujeitos a seus caprichos. E todo cuidado é pouco, principalmente quando determinados modismos aparecem sob o disfarce de fala chique. A praga do gerundismo é um exemplo disso: “Nós vamos estar passando o problema para vocês”. Cilada! Ninguém merece ouvir esse tipo de construção linguística. Xô, gerundismo!
Ciladas linguísticas
13 de Marco de 2012, por Regina Coelho