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Desejos de paz

20 de Janeiro de 2021, por Regina Coelho

“A paz/Invadiu o meu coração/De repente, me encheu de paz/Como se o vento de um tufão/Arrancasse meus pés do chão/Onde eu já não me enterro mais.

A paz/Fez o mar da revolução/Invadir meu destino a paz/Como aquela grande explosão/Uma bomba sobre o Japão/Fez nascer o Japão na paz.

Eu pensei em mim/Eu pensei em ti/Eu chorei por nós/Que contradição/Só a guerra faz/Nosso amor em paz.

Eu vim/Vim parar na beira do cais/Onde a estrada chegou ao fim/Onde o fim da tarde é lilás/Onde o mar arrebenta em mim/O lamento de tantos ais.”

 

Começo este 2021 com A paz (1986), bela música de Gilberto Gil e João Donato. A letra, segundo Gil, foi inspirada no nome do célebre romance histórico Guerra e Paz, de Tolstói, escritor russo, e baseada na oposição que o título sugere. Para o sujeito poético dos versos acima o mundo contemporâneo busca a paz, paradoxalmente, através da guerra. A rigor, no entanto, é sabido que a ausência de guerra nem sempre significa que estamos vivendo num ambiente de paz. Historicamente consideradas, situações em que essa realidade se apresentou não faltaram ao longo da trajetória da humanidade. A título de ilustração, tomem-se dois momentos em que se viveu um armistício.

A Pax Romana (Paz Romana), um conjunto de medidas aplicadas em todo Império Romano, ficou conhecida como uma época marcada por uma aparente paz e prosperidade encerrando o período da república romana em 27 a.C. num processo de transição com vistas a rever a estabilidade do Império e garantir sua integridade territorial, se necessário, por coação. Já no século XX, após a Segunda Guerra Mundial (a partir de 1945), houve uma divisão político-ideológica envolvendo os Estados Unidos e a antiga União Soviética. Nessa disputa, representada pelo capitalismo americano e o socialismo soviético, a que se deu o nome de Guerra Fria, não houve conflitos diretos entre os EUA e a URSS (uma potência mundial até então, hoje dissolvida com essa configuração única), mas sim um duradouro estado de tensão entre ambos na vigência desse período.

É possível e necessário compreender que os arranjos aos quais se dão nomes como acordos, convenções ou tratados de paz sejam costurados e assinados, no entanto e verdadeiramente, costumam gerar uma paz imposta pela caneta, pela força dos mais fortes. Não é paz. Num outro sentido, dessa vez dentro do contexto social brasileiro e com o mesmo entendimento sobre essa questão, podem ser analisados os versos da ainda atual letra de Marcelo Yuka (1965-2019) para o sucesso de Minha alma (A paz que eu não quero), de 1999, do grupo O Rappa, que teve Yuka também como seu integrante. Vejamos: “A minha alma está armada/E apontada para a cara/Do sossego/Pois Paz sem voz/Paz sem voz/Não é paz. É medo...” O termo “sossego” aqui é o silêncio, atitude passiva, socialmente aceitável. O próprio título da música faz referência a essa ilusão de um sossego que não se pode querer porque é acomodação diante das injustiças.

Do poema Maísa (Bandeira) me vem agora uma bonita e sugestiva descrição dos olhos da inesquecível cantora brasileira, cujo olhar tinha uma “expressão de amargura”: “Os olhos de Maísa são dois não sei quê dois não sei como diga dois Oceanos não Pacíficos”. Disse tudo o poeta. Os olhos grandes e expressivos de Maísa espelhavam sua vida – intensa e atormentada em comparação inversa às águas tranquilas do Oceano Pacífico.

No dia a dia das tribulações de toda ordem, estamos sempre pedindo (Me deixe em paz!) ou desejando (Fique em paz!) a alguém simplesmente o que de melhor pode haver, pois essa sensação de perfeito bem-estar inclui tudo aquilo de que precisamos para nos sentir felizes ou pelo menos em equilíbrio, o que não é pouca coisa. É fato que, diante dos sobressaltos por que passamos em razão principalmente de um grande e atual inimigo comum a todos, paz é tudo o que não estamos tendo ainda hoje. Mas recomecemos assim mesmo por acreditar, sem a utopia dos ingênuos, na possibilidade de viver dias mais tranquilos e desconceituar como uma atitude meramente contemplativa a paz, que é uma conquista, nosso bem talvez maior.

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