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Educação em alerta

17 de Novembro de 2016, por Regina Coelho

“Todo texto contém um pronunciamento dentro de um debate de escala mais ampla”. em outras palavras, “nenhum texto é uma peça isolada, nem a manifestação da individualidade de quem o produziu. De uma forma ou de outra, constrói-se um texto para, através dele, marcar uma posição ou participar de um debate de escala mais ampla que está sendo travado na sociedade. Até mesmo uma simples notícia jornalística, sob a aparência de neutralidade, tem sempre alguma intenção por trás”.

Para entender o texto – Leitura e Redação, de Platão e Fiorin

Observe-se, a título de exemplo, a passagem que segue, extraída da Folha de S. Paulo (versão online) de 19 de outubro de 2016.

Japoneses cobram menos custos e mais segurança para investir no Brasil.

O presidente da federação nacional das indústrias do Japão (Keidanren), Sadayuki Sakakibara, cobrou do Brasil “um ambiente de investimento mais aberto, com redução de tarifas e custos, melhor ambiente de trabalho e infraestrutura”. (...)

Sem dúvida, é possível perceber um tom mais duro do autor dessa matéria no uso dos termos “cobram” (= imposição dos japoneses) e “mais segurança” (= risco de investimento no país). Nas palavras contextualmente positivas do japonês – “investimento mais aberto”, “redução de tarifas e custos”, “melhor ambiente...”- o entendimento é de crítica dele à política econômica brasileira.

Isso tudo deixa claro que qualquer texto (oral ou escrito), ainda que de forma subentendida, por mais objetivo e neutro que pareça, manifesta sempre um posicionamento frente a qualquer questão posta em debate. Essa reflexão me veio a propósito do Escola sem Partido, projeto que apregoa, entre outros equívocos, a educação neutra e a censura aos professores nas escolas do Brasil.

Para o educador paulista Daniel Cara, “não é possível (ser neutro) porque qualquer tema que se aborde leva um juízo de valor do professor, o que é importante. O que ele não pode é limitar a aula a seu juízo de valor”. Pela proposta dos defensores desse programa, as escolas do país deverão afixar cartazes contendo os “Deveres do professor” com, no mínimo, 70 cm de altura por 50 cm de largura e fonte em tamanho compatível com as dimensões adotadas. Só um exemplo do que consta nesse quesito: “o professor respeitará os direitos dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Que piada! Educação de verdade não é isso.

Quase 32 anos em sala de aula como professora me transformaram profundamente. Diante dos alunos, no entanto, senti logo o peso da minha responsabilidade: o ensinamento pedagógico e o acompanhamento na formação deles. Se influenciei alguém por alguma postura, fui influenciada também como aluna. Assim acontece, até que venha a autonomia de pensamento, resultado de muitas influências, além das da escola. É difícil para muita gente aceitar que, pela natureza de seu trabalho, professores são, naturalmente, formadores de opinião, sem que deixem de ser, primeiramente, professores.

A escola deve ser o lugar dos caminhos, do debate, do confronto de ideias, da livre expressão, pressupostos de uma educação sem mordaça, como deve ser também a sociedade. E se até a ministra Cármen Lúcia, hoje presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), do alto de seu sólido saber jurídico e amparada na Constituição, assegura que o “cala a boca já morreu”, por que aceitar esse movimento que tenta controlar o que se pode ou não dizer em sala de aula?

A própria redação do Enem, uma das provas mais importantes desse exame, pode definir se o candidato terá uma boa nota final. Para tanto ele deve discutir e opinar sobre o tema proposto com conhecimento dele como um todo e, respeitados os direitos humanos, ter liberdade para adotar posicionamentos. Sem desconsiderar as outras possibilidades para isso, a sala de aula é o espaço da instrução, dos grupos heterogêneos, do pluralismo das ideias e do respeito às convicções de cada um. Isso é educação.

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