“__ Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim...
E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.
__ Olha agora!
Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo...”
Da novela Campo Geral (de Guimarães Rosa), gênero literário narrativo situado entre o conto e o romance, foi extraído o trecho acima. O senhor em questão é doutor Lourenço, médico recém-chegado ao sertão que descobre a miopia do menino Miguilim. Usando os óculos do doutor, ele passa a enxergar com perfeição tudo a seu redor. O momento é mágico para Miguilim.
De uma simplicidade encantadora, a cena retratada por Rosa (teria ele sido sua própria inspiração de garoto míope?) revela uma realidade comum a muitos: a condição dos dependentes de óculos de grau. Como é sabido, a escola costuma ser o local em que essa situação fica mais evidente, pois o quadro (ou lousa), ou melhor, o que está escrito lá representa para os alunos um inevitável teste de averiguação da visão de tantos olhos em busca da leitura de letras e números. Comprovada a deficiência visual, sendo talvez a miopia (dificuldade de enxergar bem de longe) a mais comum delas, os óculos são prescritos e providenciados. Então, uma nova vida começa, no mínimo, com uma mudança que está literalmente na cara da pessoa e, muitas vezes, com alguns percalços na convivência diária e constante com tão necessário objeto inadequadamente chamado de acessório pelos outros. Para nós, os míopes, nossos óculos são essenciais.
Em assim sendo e descartando a cirurgia de correção do problema, ficar sem os óculos (ou sem as lentes de contato) corresponde a passar por apuros. Praticar esportes, por exemplo, o futebol, sem ver direito a bola, os colegas, os adversários, o juiz e as traves do gol deve ser horrível. Não identificar pessoas conhecidas no outro lado da rua é o fim. Não ler placas de rua ou de carro, anúncios ou mensagens em faixas e outdoors, idem. Para aqueles que não conseguem viver sem os seus “olhos de vidro”, perdê-los ou vê-los quebrados vira um drama. Especificamente quanto aos mais vaidosos, incluídas aí principalmente as mulheres, há os que preferem não enxergar nada a ter que usar óculos de grau.
Hoje, felizmente, estilosos e confortáveis, esses companheiros quase inseparáveis de quem tem miopia, hipermetropia, astigmatismo, presbiopia e outros tipos de doenças oculares costumam ser um símbolo positivo da personalidade de seus donos, incluindo celebridades e personagens do momento (Jô Soares, Bill Gates, o fictício Harry Potter...). E são vistos ainda como item de moda. Ou, conforme garante uma ala masculina, sendo uma peça que confere a certas mulheres um poderoso ar sexy. Será? Num passado recente, no entanto, usar óculos era motivo de vergonha, principalmente para crianças e adolescentes, pois significava ser destacado negativamente, zoado pela turma e virar alvo de piadinhas sem graça e apelidos como “quatro oio”, olho de fundo de garrafa, farol de carro e nerd.
Um olhar sobre a história dos óculos no Brasil permite afirmar que eles surgiram entre nós no século XVI graças à colonização portuguesa, sendo usados principalmente por religiosos (em sua maioria, jesuítas), funcionários da Coroa (servidores da corte de Portugal), colonos abastados e homens de letras. Situação completamente diferente nos dias atuais, é impressionante o número de brasileiros usando óculos de grau por aí. Oportunamente, recorro à inspirada letra do compositor Herbert Viana em Óculos (1984), cujos versos finais podem definir com clareza o modo como essa gente toda deve se ver: “Eu não nasci de óculos... / Eu não era assim... / Por trás dessa lente tem um cara legal”.