O décimo primeiro filho de João Eduardo Torres Câmara Filho, maçom, jornalista, crítico teatral e funcionário de uma firma comercial e da professora primária Adelaide Pessoa Câmara veio ao mundo em Fortaleza (Ceará), no dia 7 de fevereiro de 1909, um domingo de carnaval. Para a escolha do nome daquele menino, o pai, numa inspiração, foi até a estante onde a esposa guardava seu material de trabalho escolar, abriu um livro ao acaso e pousou os olhos sobre lugares do mundo. Seu dedo foi passando por países, ilhas, cidades... E, ao olhar regiões do norte da Holanda, parou sobre o nome ‘Hélder’, pequeno ponto naquele mapa atribuído a um forte. Categórico, ele afirmou: ‘Este filho vai se chamar Hélder’. Mais tarde, o senhor João Eduardo veio a descobrir que o nome escolhido significava ‘céu claro’ ou ‘claridade’.
Uma das brincadeiras preferidas do garoto franzino, que no dia do batizado recebeu água morna na cabeça por temerem pela sua saúde, era ir à feira com o irmão mais velho, Mardônio, e voltar para casa cheio de pitombas. Sorrateiramente, depois de chuparem a fruta típica nordestina, eles subiam até o alto do sobrado onde moravam e se divertiam atirando as sementes nos passantes.
Aluno aplicado e estudioso, gostava muito de francês, tendo desenvolvido um apurado senso crítico na leitura de livros nessa língua. Só não gostava de castigar ninguém nas sabatinas, quando aquele que errasse perguntas feitas pelos colegas teria de ser por esses justiçado, com a palmatória. ‘Professora, sou incapaz de bater em alguém’, repetia o tímido menino, cheio de boas intenções, quando era a sua vez de assim proceder. A resistência pacífica dele a esse tipo de castigo, então muito comum nas escolas, levou a professora, Dona Salomé, a suspender a punição física em suas aulas. Uma primeira vitória do natural senso de justiça do filho de dona Adelaide.
A vocação para o sacerdócio já se fazia presente. O pai gostava de lembrar-lhe que ser padre e ser egoísta não combinavam. Em uma de suas conversas com o pequeno Hélder, ele o interrogou, afirmando: ‘Você sabia que uma pessoa para ser padre não pode pensar só em si mesma? Os padres acreditam que, quando celebram a Eucaristia, é o próprio Cristo quem está presente. Você já pensou nas qualidades que devem ter as mãos que tocam diretamente o Cristo?’, ao que o filho lhe afirmou: ‘Pai, é um padre assim que eu quero ser’. Estava se consolidando a decisão do garoto Hélder de se tornar padre, desejo secretamente aspirado pela mãe e assumido pelo pai.
No ano de 1923, o jovem Hélder Pessoa Câmara ingressou no Seminário Diocesano de Fortaleza. Tempos de disciplina rigorosa e dos primeiros questionamentos. O espírito audacioso daquele seminarista haveria de levá-lo a se envolver em discussões memoráveis, postura que manteria pela vida toda.
A propósito dessa sua personalidade combativa, vem à tona um episódio interessante envolvendo a figura do Reitor do seminário, que possuía absoluto controle sobre o que era privativo de cada um dos estudantes, possuindo inclusive a cópia da chave dos cadeados das bancas onde os alunos guardavam seus livros, cadernos, papéis. Certo dia, o padre o abordou, perguntando-lhe se não estava sentindo falta de seus papéis. Com a sinceridade e o respeito de sempre, o jovem foi incisivo ao dizer que queria evitar o constrangimento dele, que havia mexido em sua banca pela madrugada, como um ladrão, levando papéis que não lhe pertenciam e completou dizendo que ‘quis livrá-lo dessa humilhação’. Abalado, mas comovido com a firmeza de seu aluno, prometeu que jamais repetiria aquilo. Mas, antes de devolver-lhe tudo, quis interrogá-lo sobre a mania de escrever versos, dizendo que ele ‘corria perigos por causa da poesia, pela imaginação vagando...’ E o jovem, prontamente, afirmou: ‘Poeta, senhor Reitor, não é só quem faz versos, mas quem vibra diante da beleza, como o senhor’. E prosseguiu, defendendo o direito de expressar-se em poesia ou ‘meditações’, como ele se referia a seus textos. No entanto, num gesto de renúncia e de sabedoria, comprometeu-se a não mais fazer poesia, até o dia de sua ordenação, pedindo, porém, ao Reitor que confiasse nele e não mais bisbilhotasse os seus pertences, nem os dos colegas. Confirmando essa confiança, o padre devolveu-lhe a cópia da chave de sua banca. Ele retrucou, dizendo: ‘Não quero isso apenas para mim, não quero privilégios’. Padre Tobias ainda o questionou sobre o fato de que nem todos teriam a maturidade que ele já apresentava. E ele, firme, lamentou que o Reitor não confiasse na juventude e não fizesse um apelo para a lealdade de todos. Convencido, o padre resolveu arriscar e devolveu todas as cópias das chaves aos respectivos donos.
No dia 15 de agosto de 1931, o jovem Hélder foi ordenado padre, aos 22 anos, com autorização especial da Santa Sé, por não possuir a idade mínima exigida para tal. No mesmo ano, fundou a Legião Cearense do Trabalho e em 1933, a Sindicalização Operária Feminina Católica, que congregava lavadeiras, passadeiras e empregadas domésticas. Ainda na capital cearense, atuou na área da educação, sendo transferido em 1936 para o Rio de Janeiro.
Desde sua ordenação, padre Hélder acordava todos os dias às duas da manhã, rezava, lia seu breviário, respondia a sua correspondência, meditava a respeito do dia passado e escrevia poesia. Foram 7547 meditações (sem contar as centenas que ele jogou no lixo) sobre os mais variados assuntos: a fé em Deus e em Maria, as asas quebradas de um passarinho, a crença no amor dos homens, a esperança na justiça social...
Voltando aos anos 30, há que se registrar um fato no mínimo curioso ligado à vida desse brasileiro notável. Empolgado com a radicalização política daquela época, ele juntou-se às fileiras do integralismo (organização de extrema direita baseada nos moldes fascistas). ‘Foi meu erro de juventude’, confessaria mais tarde.
Na casa onde passou a morar em Botafogo (Rio de Janeiro) com a família, que viera de Fortaleza, padre Hélder tinha uma empregada de confiança a quem costumava dar umas gorjetas. Esperava um momento de distração da moça, aproximava-se dela e berrava-lhe ao pé do ouvido: ‘Olha a barata, Maria!’, e jogava-lhe algumas notas.
A atenção e o afeto que dispensava aos que para ele trabalhavam no âmbito doméstico não lhe faltaram também no trato e no trabalho com todos aqueles que se guiaram pela mão firme de um sacerdote idealista e de atuação destacada, notadamente em favor dos mais necessitados. Que o digam, principalmente, seus 28 anos de muitas realizações no Rio de Janeiro.
(A matéria continua na próxima edição)
O peregrino da paz (I)
18 de Abril de 2009, por Regina Coelho