Durante sua permanência de 28 anos no Rio de Janeiro, padre Hélder Câmara escreveu para periódicos católicos, tendo trabalhado também como diretor técnico do ensino da religião. Foi nomeado bispo auxiliar do Rio no dia 03 de março de 1952 e ordenado bispo em 20 de abril de 1952, aos 43 anos. Dom Hélder foi um dos fundadores da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), da qual presidiu a primeira reunião e se tornou uma das vozes mais respeitadas. Sua inquestionável capacidade de articulação tornou realidade o XXXVI Congresso Eucarístico Internacional, em 1955, na então capital do Brasil, que contou com a presença de cardeais e bispos do mundo inteiro. Ele também teve participação ativa no Concílio Ecumênico Vaticano II.
Dotado de uma visão aguda para as questões sociais mais urgentes, Dom Hélder criou em 1956 a Cruzada São Sebastião, com o objetivo de oferecer moradia digna aos favelados cariocas, o que veio a ser um impulso inicial para a construção de outros complexos habitacionais no país. Em 1959, instituiu o Banco da Providência, órgão que tinha como meta auxiliar os que viviam em condições precárias. ‘As camisas dele sumiam e só quando abríamos o guarda-roupa notávamos que haviam sido dadas aos pobres.’ Nada é mais esclarecedor sobre a personalidade bondosa de Dom Hélder do que esse depoimento de Maria José Duperron Cavalcanti, secretária por longos anos do ‘bispo vermelho’, que era como se referiam a ele seus opositores, por medo de suas ideias progressistas.
Em defesa delas, as divergências com o cardeal Dom Jaime Câmara (sem parentesco com ele) tornaram difícil sua vida no Rio. E diante da complicada situação sociopolítica nacional, Dom Hélder foi transferido para a Arquidiocese de Olinda e Recife no emblemático ano de 1964. Lá deu início a um dos maiores programas sociais já vistos no Nordeste, ajudando os flagelados das enchentes e incentivando o surgimento de lideranças populares como forma de enfraquecer o mero assistencialismo.
Suas obras repercutiram internacionalmente e por elas recebeu cerca de 600 condecorações, entre placas, diplomas, medalhas, certificados, troféus e comendas. Por estabelecer uma clara resistência ao regime militar, tornou-se líder contra o autoritarismo e pelos direitos humanos. Pregava no Brasil e no exterior uma fé cristã comprometida com os anseios dos mais pobres. Foi perseguido pelos militares por sua atuação social e política, sendo acusado de comunista. Nesse período, foi-lhe negado o acesso aos meios de comunicação social por aqui, o que não o impediu de, em 1970, conseguir reunir mais de 20 mil pessoas em Paris para, do alto de seu 1,60 m de altura, denunciar torturas no Brasil.
Arcebispo emérito a partir de 1985, o homem que muito antes abandonara o palácio do bispo para viver em uma pequena casa paroquial não deu por encerrada sua missão. Nos anos 90, inaugurou com o auxílio de várias organizações filantrópicas a campanha ANO 2000 SEM MISÉRIA.
Teve ainda inúmeras obras publicadas, posteriormente traduzidas em diversos idiomas. Indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel da Paz, Dom Hélder, a quem o papa João Paulo II chamou de ‘irmão dos pobres e meu irmão’, faleceu no dia 27 de agosto de 1999, em Recife, vitimado por uma parada cardiorrespiratória.
De volta ao passado, é possível resgatar a imagem do menino andando pela rua com a mãe e aprendendo com ela bela lição. Era costume da maioria católica daquelas paragens cearenses e daquele tempo descer afastar-se da calçada em frente ao templo evangélico, numa clara demonstração de intolerância, de separação, de preconceito religioso. Caminhando ao lado da mãe, ele repete o gesto, sem saber por que deveria fazer assim. Ela estranha a atitude do filho e o obriga a passar várias vezes pela frente daquela igreja, ensinando-lhe o fraterno convívio. Valeu-lhe muito o ensinamento materno. Jamais ele segregaria alguém.
Homem de aparência frágil e de palavra forte, Dom Hélder Câmara é hoje lembrança viva de uma trajetória de 90 anos permeada de incontáveis lições de vida.
Comemorar o centenário de nascimento desse brasileiro que marcou positivamente o século XX com sua caminhada de fé no ideal cristão é preservar sua memória, levando ao conhecimento dos mais novos a história bonita protagonizada por alguém a quem chamavam de O PEREGRINO DA PAZ.
E como tributo a Dom Hélder, segue abaixo uma coletânea de alguns de seus muitos pensamentos:
- Feliz de quem atravessa a vida inteira tendo mil razões para viver.
- As pessoas são pesadas demais para serem levadas nos ombros. Levo-as no coração.
- Quando dou comida aos pobres, chamam-me de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista.
- A melhor maneira de ajudar os outros é provar-lhes que eles são capazes de pensar.
- É graça divina começar bem. Graça maior é persistir na caminhada certa. Mas graça das graças é não desistir nunca.
- O amor é o perfume das almas.
- Mais importante que escutar as palavras é adivinhar as angústias, sondar o mistério, escutar o silêncio...
- Só as grandes humilhações nos levam ao recesso último de nós mesmos, lá onde as fontes interiores nos banham de luz, de alegria e de paz.
- É bom que ninguém se iluda, ninguém aja de maneira ingênua: quem escuta a voz de Deus e faz sua opção interior e arranca-se de si e parte para lutar pacificamente por um mundo mais justo e mais humano, não pense que vai encontrar caminho fácil, pétalas de rosas debaixo dos pés, multidões à escuta, aplausos por toda parte e, permanentemente, como proteção decisiva a mão de Deus. Quem se arranca de si e parte como peregrino da justiça e da paz, prepare-se para desertos.
- Gosto dos pássaros que se enamoram das estrelas ao voarem em busca da luz.
- Quando houver contraste entre a tua alegria e um céu cinzento ou entre a tua tristeza e um céu sem nuvem, bendiz o desencontro: é aviso divino de que o mundo não começa e nem acaba em ti.
Aos sinceros, Deus perdoa.
Não grites incoerência,
hipocrisia,
falsidade,
sem a coragem cristã
de olhar primeiro,
mas a fundo,
bem a fundo,
teu próprio rosto.
O PEREGRINO DA PAZ (II)
16 de Maio de 2009, por Regina Coelho