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O preto no branco

17 de Novembro de 2021, por Regina Coelho

A reprodução de certas expressões em nosso meio, entre sutilezas, supostas brincadeiras e aparentes elogios, é sinal do quanto o preconceito racial ainda está incorporado à visão de mundo das pessoas. Naturalizados por longo uso, esses termos nem sempre são percebidos como racistas, nem por isso cabem no vocabulário dos nossos dias.

“Mas que programa de índio!” é uma dessas falas. É provável que eu mesma já tenha me expressado assim em algum momento e por isso faço aqui um mea-culpa. Antes usada para se referir a atividades ao ar livre, como fazer trilha, caminhada pela cidade ou tomar banho de cachoeira, com o tempo virou sinônimo de coisa chata, estranha. Expressar-se assim é enfatizar a discriminação contra a cultura indígena (muito rica, diga-se de passagem), postura fundamentada no falso pressuposto de uma superioridade cultural atribuída aos colonizadores europeus e seus descendentes, herança de um Brasil que não existe mais.

Verdade é que todo cuidado com as palavras é pouco. Recentemente, no início de outubro, Luís Roberto Barroso, presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), foi infeliz ao cumprimentar em entrevista para a GloboNews as jornalistas Aline Midlej e Flávia Oliveira, que são negras. “Inveja branca de vocês, que estão aí no Rio (ele nasceu em Vassouras - RJ). Aliás, essa frase já é politicamente incorreta. Antigamente se dizia isso”, corrigiu Barroso. Ao se desculpar novamente, afirmou que “a gente, na vida, deve saber pedir desculpas” e refez o cumprimento às entrevistadoras. Aline afirmou que estava tudo certo e que “a gente está em constante aprendizado”, acrescentando: “Ministro, eu ia falar isso. Olhei para a Flávia meio assim, de canto de olho. Um ministro tão elegante, tão carinhoso”.

“Inveja branca” é considerada uma expressão racista porque associa a ideia de algo positivo com o que é branco. Sendo assim, a inveja, que é algo ruim, deixa de ter caráter negativo por ser “branca”. Ao mesmo tempo, o termo reforça ainda a associação racista do preto com atitudes negativas, isso em um país marcado por um longo passado escravagista.

Com foco restrito agora ao uso dos termos “preto”“negro” e “branco” (e suas variações de gênero), impossível não lembrar (para esquecer depois), um clássico exemplo, no fundo, uma espécie de “bondosa” concessão a quem, apesar de negro, tem a alma de branco, “boa”. Trata-se do indesculpável “preto de alma branca”. Inadmissível dizer ou ouvir isso. Pior ainda é ter esse tipo de pensamento. É como canta Jorge Aragão, em Identidade: “Se preto de alma branca pra você / É o exemplo da dignidade. / Não nos ajuda, só nos faz sofrer. / Nem resgata nossa identidade”. Também para ser esquecida me vem à lembrança uma outra fala deplorável, ou seja, “serviço de preto”.

Há quem defenda que certas construções linguísticas não são preconceituosas simplesmente pelo uso de termos que necessariamente não remetem às comunidades negras. Algumas delas: “a coisa tá preta”, “lista negra”, “magia negra”, “mercado negro”, “ovelha negra” (em sentido figurado, alguém que destoa negativamente de um grupo). Inquestionável, porém, é considerar que, nos casos citados, a conotação é depreciativa. Uma exceção a registrar: “grana preta” (valor muito alto em dinheiro), o que é visto geralmente como coisa agradável.

De outra forma, em se tratando do termo “branco” (e variações), de forte associação ao que é tido como positivo, há também exceções. “Deu branco” é uma delas (= esquecimento momentâneo de algo que se sabe). “Elefante branco” é outra (= em sentido figurado, algo valioso ou no qual se gastou muito dinheiro, muitas vezes uma grande obra, mas que não possui utilidade ou importância prática). Como se pode ver por aí, a conotação é negativa para “branco”.

Pondo literalmente “o preto no branco” ao escrever essas breves considerações, que fique aqui firmado o nosso empenho coletivo de desconstrução de todos esses discursos ofensivos de cunho racista. Respeito é tudo!

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