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Poder linguístico

12 de Julho de 2020, por Regina Coelho

comecei minha carreira profissional como professora de inglês, assim permanecendo por alguns bons anos. E era comum, na época, ouvir de certos alunos, os mais arredios aos estudos, a mesma frase: “Por que é que eu vou estudar inglês se não vou pra Inglaterra?”. Como contra-argumentação a esse raciocínio, e armada de paciência, praticamente discursava dizendo que a língua inglesa é uma das mais faladas no mundo. Que é uma segunda língua para os falantes em viagens e negócios internacionais. Que é o idioma mais usado em pesquisas e publicações científicas importantes e nas relações diplomáticas. E por aí prosseguia. Não vivíamos ainda uma era globalizada, muito menos conectada pela internet.

Essa lembrança me veio agora, exatamente depois de ver no último 14 de junho uma entrevista por videochamada do rapper Emicida ao apresentador Faustão para o seu programa de domingo (Globo). Bem-articulado, coerente e corajoso, Emicida brilhou e viralizou nas redes sociais. Falando com muita propriedade, fez comentários sobre racismo, violência doméstica, desigualdade social, fragilidade masculina e, é lógico, sobre o novo coronavírus, entre outros temas de relevância. E conseguiu calar até o entrevistador, sempre tão falante, mas atento ao seu convidado.

Excelente a participação do artista no Domingão! Faço apenas uma observação discordante em relação às suas palavras finais. Ao se referir à atual pandemia e a todo este nosso contexto social, o rapper questionou o uso, para ele indevido, dos termos ingleses adotados pelos brasileiros como forma de comunicação nestes tempos de crise sanitária e outras daí advindas.

Como se sabe, situações novas pedem palavras novas. Vinda do inglês e escolhida oficialmente para denominar a doença do momento, Covid-19 (coronavírus + disease) é uma dessas. O uso de outros termos dessa mesma língua, como lockdown e a expressão “testou positivo”, cuja construção não é tradicional no português, não prejudicam nossa língua e não causam, necessariamente, uma dificuldade na compreensão da mensagem transmitida. Mahayana Godoy, linguista e professora de linguística da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), defende o uso da palavra lockdown por entender que esse termo faz sentido para as pessoas, já que o significado que tem – confinamento – não é o mesmo para o programa BBB, por exemplo, e sim algo específico para o cenário da pandemia.

A universalidade da língua de Shakespeare pode ser atestada também nos pronunciamentos feitos pela Organização Mundial da Saúde através de seus chefes, notadamente do etíope Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, falando atualmente ao mundo um inglês bastante compreensível.

É oportuno considerar ainda que não é novidade o uso informal do inglês em grande parte do planeta, e não seria diferente aqui. Nas mais variadas situações cotidianas, os exemplos desses anglicismos (palavras ou locuções inglesas introduzidas noutra língua e empregadas como sendo desta) aparecem aos montes. Alguns deles a título de ilustração: check-in, cupcake, fast-food, cheeseburguer, bike, self-service, fashion, hobby, design e tantos outros. Na área da informática, vamos nos apoderando de palavras antes estranhas e com elas ganhando intimidade: WhatsApp pode ser “zap”, Facebook ou Face? tablet, mouse, site... E sobre aquela ideia de alguns, distante no tempo e no espaço, de não ir à Inglaterra, então não ser útil estudar inglês, é pra esquecer isso. Ele é onipresente.

Como todo empréstimo linguístico, o anglicismo, quando usado com bom senso e adequação, não constitui um problema. O mesmo não se pode dizer quando dele se utiliza o falante de modo abusivo, assim ameaçando a soberania de sua língua pátria, no nosso caso, o português, símbolo de identidade cultural do povo brasileiro.

Quanto a Emicida, curiosamente, é no rap (discurso rítmico com rimas e poesias surgido no final do século XX nas comunidades afrodescendentes nos Estados Unidos) que ele encontra sua brasileira forma de expressão artística.

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