Atuei profissionalmente como professora nos Ensinos Fundamental e Médio. Foram quase 32 anos ininterruptos durante os quais convivi, evidentemente, com muitas pessoas. Entre colegas, diretores e demais funcionários das escolas por onde passei, pais de alunos e alunos, atenho-me aos últimos, os grandes protagonistas desse processo chamado educação e do presente artigo.
Começo dizendo que não tenho a mínima condição de calcular, ainda que aproximadamente, o número de alunos que tive ao longo dos anos. Sei é que passou pelas minhas aulas, primeiramente de inglês, depois de português e literatura, gente das mais variadas idades, origens e atividades. No princípio da carreira, era comum ver na sala de aula alunos mais velhos do que eu, o que foi mudando, é claro, com o passar do tempo. Havia também uma boa quantidade de meninos vindos principalmente dos povoados daqui e de lugares próximos de Resende Costa para dar prosseguimento a seus estudos. Isso ocorria pela falta da extensão de séries e do antigo segundo grau nessas localidades. E não é que até mesmo uma família de angolanos apareceu por aqui com seus filhos matriculados na Escola Conjurados? De vez em quando, para delírio de muitos, surgiam em uma ou outra turma adolescentes integrantes de algum circo instalado na cidade. Mas, do mesmo modo que davam o ar de suas graças, iam embora sem esquentar carteira, quase sempre sem que fosse possível guardar sequer seus nomes. Meninos que moravam no então Asilo São Camilo, gente de companhia, freiras e soldados também estiveram entre os inúmeros alunos que passaram pela minha vida profissional.
A julgar pelo convívio de tanto tempo com uma diversidade tão grande de tipos humanos, dá para imaginar a quantidade de histórias que vivi ou presenciei no dia a dia da sala de aula. Selecionei algumas. Contarei os “milagres”, mas omitirei os “santos”. Vamos a elas.
Certa feita, ouvi de um aluno um pedido em nome de um colega para que este pudesse ir ao banheiro. Respondi ao solicitante que gostaria que o colega necessitado de sair da sala falasse isso comigo diretamente, que ele tinha boca para falar. “Isso mesmo, eu falei com ele que a senhora não morde”, replicou o intermediário daquela conversa. De uma outra vez, estava passando pelas fileiras de carteira conferindo o inevitável e sempre diário dever de casa. Foi quando um engraçadinho, logicamente com a tarefa por fazer, passou despistadamente para uma das filas dos que já tinham mostrado o caderno. Percebendo a manobra dele, iniciei aquele sermão, dizendo-lhe que ele precisava nascer de novo para me enganar, pois, quando ele nasceu, eu já trabalhava. Foi o que bastou para um gaiato dizer: “Nossa, a senhora deve ter uns quase 40 anos”. Aconteceu também um dia que, por alguma razão qualquer, não me lembro qual foi, uma das lentes de contato que usava (ainda uso lentes) caiu no chão. Abaixei-me para procurá-la, explicando a todos o que acontecera. Então, um dos alunos que se dispuseram a me ajudar a achar a tal lente me perguntou, seriamente assustado, se eu usava aquilo para enxergar mais do que eles. Igualmente inesquecível foi o que aconteceu numa certa aula de redação. Como forma de motivar a turma para o que pretendia, coloquei para tocar a belíssima “João e Maria”, de Chico Buarque e Sivuca. Lá pelo meio da canção, uma aluna, daquelas bem espevitadas, soltou esta pérola: “Ah, credo, Regina, cê não tinha uma música melhorzinha pra trazer pra nós, não?” Fiquei desconcertada com tamanha sinceridade, achando impossível alguém não gostar daquele primor de valsinha. Isso para mim, para muitos, não para ela. E tem ainda o caso de um aluno que me abordou no primeiro dia de aula dele comigo para dizer que eu havia sido colega da mãe dele. Quis saber de quem ele era filho. Ao me responder, ele acrescentou para todos ouvirem: “a mãe falou que a senhora não deixava ninguém olhar suas provas”. Até hoje fico na dúvida se aquilo foi um elogio ou uma crítica.
Sala de aula também é lugar para debates acalorados sobre temas da atualidade. Acreditando nisso e apostando no empenho e no entusiasmo das turmas, testemunhei muitos momentos de alto nível no embate das ideias entre colegas. Do meu gosto pessoal uma outra aposta foi o lançamento do “Revelação 92”. Uma turma pequena de 8ª série, a montagem de um jornal-mural, trabalho extraclasse voluntário e sem nota no diário, e o talento dos alunos se revelando na produção das matérias.
Alunos, alunos aos montes, mas cada um era alguém único. Talvez por isso mesmo era impossível evitar alguns conflitos entre eles, entre mim e alguns deles. Na soma geral, prevaleceu a harmonia entre nós. Calados, tagarelas, nervosos, desligados, amorosos, dissimulados, nervosos, aplicados, espirituosos... eles formavam um vasto mosaico de personalidades tão diferentes.
(A matéria continua em setembro.)