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Sob censura (Final)

16 de Abril de 2014, por Regina Coelho

O clima de Copa do Mundo já está literalmente no ar. Das muitas propagandas alusivas ao evento exibidas atualmente pela tevê, algumas belíssimas como a da Sadia, com a criançada que ainda não viu o Brasil campeão pedindo o título, ou outras com o onipresente técnico Felipão, a do cartão Mastercard tem um quê de passado representado pela música que compõe a peça. Com adaptação aos dias de hoje, por exemplo, sem os “noventa milhões em ação” do início da letra, o Pra frente, Brasil, de Miguel Gustavo, que foi o verdadeiro hino que embalou a torcida brasileira na conquista da Copa de 70 no México, aparece com destaque.

Naquele ano, o Brasil vivia tempos da ditadura militar, que soube tirar proveito do tricampeonato ganho em junho. A população era massificada pela propaganda institucional nos meios de comunicação, que ou eram ameaçados pela censura, ou patrocinavam aquele regime de exceção com programas muito bem elaborados como o Amaral Neto, o repórter e os programas de Flávio Cavalcanti, entre outros, com audiência de até dez milhões de telespectadores em horário nobre, número muito expressivo para a época. Marcada por um forte tom de aventura, por imagens impactantes e pela exaltação patriótica e ufanista dos temas abordados, a atração comandada por Amaral Neto teve duração de 15 anos (1968-1983). Sobre Flávio Cavalcanti, apresentador-símbolo da TV nos anos 70, com registro de 70% de audiência e representando um terço do faturamento da TV Tupi, sabe-se que ele ficou conhecido também pela sua ligação com a doutrina política que orientou o regime militar, mesmo tendo tido alguns problemas com o mesmo.

O propósito de enaltecer as maravilhas e a grandeza do país era reforçado por canções de ufanismo como Eu te amo, meu Brasil (com Dom e Ravel) e Este é um país que vai pra frente (com Os incríveis), entre tantas. Slogans ostentados em objetos e em carros não deixavam dúvida sobre o recrudescimento do período. Brasil – ame-o ou deixe-o e Quem não vive para servir ao Brasil não serve para viver no Brasil são dois famosos exemplos disso.

Do outro lado desse cenário de aparências, a situação era bem diferente. Trabalhando sob censura, artistas vinculados à produção musical enfrentavam sérias dificuldades na aprovação de suas músicas. “A cada 12 canções que eu fazia, 7 eram censuradas”, queixa-se hoje o cantor e compositor Odair José, autor da então ousada Pare de tomar a pílula. Segundo os censores, suas músicas iam contra a moral e os bons costumes, preceitos considerados sagrados pelos militares. Um caso curioso foi a censura imposta a Waldick Soriano por Torturas de amor, música barrada provavelmente apenas pelo título, muito bonita por sinal, e que começa assim: hoje que a noite está calma / e que minh’alma esperava por ti / apareceste afinal / torturando este ser que te adora... O problema estava na palavra “torturas”. No caso, nada a ver, ao que parece, com a situação daquele momento político.

Se a mão pesada da censura não poupava nem os compositores do chamado gênero brega, que eram tidos como alienados, o controle sobre os politicamente mais engajados, por certo, era ainda mais rigoroso. Como estratégias de resistência e de protesto, alguns desses artistas se viram obrigados a lançar mão de ambiguidades (duplo sentido nas letras) e de metáforas para a aprovação de seus textos junto aos censores. Em Cálice, composição de Chico Buarque e Gilberto Gil, o próprio título pode ser entendido como “cale-se”, numa referência à falta de liberdade de expressão naqueles sombrios anos. No contexto da letra, o mesmo termo sugere sofrimento em verso inspirado nas palavras de Jesus: “Pai, afasta de mim este cálice”. Na exemplificação do sentido metafórico ou figurativo apreendido de muitas letras, a comovente O bêbado e o equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco, é a síntese perfeita de um país vivendo difíceis anos de autoritarismo.

 

Em 1968, o III Festival Internacional da Canção entrou para a história da MPB pela tônica de protesto ao regime militar, tanto nas canções como na reação do público. Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, venceu o festival, a despeito das vaias da plateia, que preferia Pra não dizer que não falei de flores (ou Caminhando), de Geraldo Vandré, que ficou em segundo lugar. Também intérprete da canção que incitava o povo a reagir e não esperar acontecer (Vem, vamos embora / que esperar não é saber / quem sabe faz a hora / não espera acontecer...), tornando-se um símbolo contra a ditadura, Vandré foi perseguido pelo regime, sendo obrigado a exilar-se.

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