Voltar a todos os posts

Tempos de Anunciação

16 de Fevereiro de 2017, por Regina Coelho

Dona Anunciação tornou-se uma figura lendária em Resende Costa e deixou muitas saudades

eu me lembro bem. Na rodoviária de São João aguardando o ônibus que me traria de volta a Resende Costa, avistei em frente ao Supermercado Monte Rey a Anunciação gritando meu nome a plenos pulmões para me perguntar em seguida, com uma certa apreensão, se tinha havido reunião na Delegacia de Ensino. Ao fazer aquilo, ela dava a entender que poderiam não ter lhe avisado sobre o encontro. Disse-lhe então que estava ali por outras razões, tranquilizando-a. Minha “colega de trabalho” abriu um sorriso aliviado. Isso mesmo! Anunciação era professora, diretora, inspetora, delegada, juíza, promotora... O que ela quisesse ser.

Por muito tempo, ela desfilou sua figura simpática pelas ruas de sua cidade. Sua, sim, pois mandava em tudo por aqui. Em suas visitas à E. Conjurados para “conferir” se estavam em ordem as coisas por lá, a festa dos alunos estava garantida com a sua alegria. Sem atrapalhar o andamento das aulas, passava pelo corredor, dava uma espiadinha pelas salas, puxava uma conversa rápida e divertida com a meninada e ia embora feliz. E assim prosseguia, passando também pela Minas Caixa (extinta em 1991) e pelo Cartório do Tonico, lugares onde era recebida como “autoridade” que era, assinando e carimbando papéis. E assim acontecia pelos lugares por onde ia.

Querida pelos adultos e pela criançada, havia, porém, em algumas pessoas uma vontade incontrolável de provocá-la com certas brincadeiras de mau gosto como quando, por exemplo, a chamavam de Maria Fumaça, Ponte Preta, coisas desse tipo. Ela ficava brava, fora de si e retribuía as provocações com xingamentos tão fortes que pareciam lhe saltar do pescoço as veias. Mas, certa vez, presenciei uma cena, no mínimo, digna de análise. Vítima constante de uma certa turma de meninos que jogavam bola diariamente na rua e não a deixavam em paz, ela reagiu de forma surpreendente ao perceber que eles, naquele dia, entretidos na brincadeira, não deram por sua presença. “Ô, menino, cê não tá vendo eu aqui, não?”, indagou a Anunciação a um deles.

Em 1992, o Lar São Camilo passou a ser sua nova casa. Brincalhona, ela só se irritava mesmo, como já foi dito, se insistiam em tratá-la pelos apelidos, que detestava. Aí, ameaçava chamar o “seu Inácio Polícia”. É o que diz a cuidadora de idosos Cida M. Lima, 54, há 17 anos no Lar, escolhida como sua madrinha de consagração em pedido da Anunciação ao padre Claudir.

história interessante sobre essa marcante criatura ouvi do Dr. Donizetti (juiz de direito da comarca de Resende Costa). Era sua primeira ida, a trabalho, ao Lar São Camilo. Recebido pela Irmã Judith, teve a oportunidade de ser apresentado à D. Maria (como se refere a ela), que cantou para ele uma música em latim. Imagino que tenha sido o canto da Verônica, que acompanha bonito ritual da Sexta-Feira Santa. Conversa vai, conversa vem. “E a senhora gosta daqui?”, ele pergunta. “Não”, responde ela. Constrangimento, ao que a “cantora” emenda: “A comida daqui não tem sal”. Alívio geral, explicações da Superiora sobre os cuidados com a saúde dos moradores da Casa e a promessa dele de enviar para sua nova conhecida um doce de leite. Promessa esquecida. Passados uns dois anos, por dever do cargo, ele voltou ao Lar e quis rever a D. Maria. Ao lhe perguntarem se ela se lembrava dele, a resposta foi direta: “É aquele que me prometeu um doce e não me deu”. Depois dessa, doce mandado. Promessa cumprida.

Maria Anunciação de Jesus nos deixou no último dia 20. Lúcida o tempo todo, cega há um bom tempo, boa saúde. “Mas já conversava bem fraquinho”, afirma Jhennifer, 21, técnica em enfermagem do LSC, parecendo explicar a inevitabilidade de sua partida. Tranquilamente, aos 90, quase 91 anos, de acordo com os registros do Lar mostrados por Josielle Chagas, 23, recepcionista. Controversa idade – mais de 100 anos? Dizem. Isso não importa.

Parafraseando Manuel Bandeira, com seu singelo poema Irene no céu, imagino Anunciação entrando no céu: - Licença, meu branco! E São Pedro bonachão: - Entra, Anunciação. Você não precisa pedir licença.

Comentários

  • Author

    Prezada Regina, que bela homenagem! Estive há dois anos com Anunciação, e conversei bastante com ela na época. Uma mulher boa para se conversar, excelente de prosa. Seu tom professoral sempre me cativou. Eu não fiquei sabendo de seu óbito. Soube agora pelo seu, belo, texto. Um crônica que termina com o nosso Manuel Bandeira, com Anunciação entrando no céu, tão bonachona como São Pedro. Valeu pela bela homenagem, por esse "Tempos de Anunciação"!


Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário