Acordou sentindo o frio enevoado que soprava janela adentro do seu quarto naquela manhã de inverno. Aconchegou-se debaixo das cobertas puxando-as até o pescoço e deitou-se em decúbito dorsal (de barriga para cima): era preguiça de se levantar! Conferiu o relógio de pulso e se aprouve do atraso da hora. Tinha tempo. Cruzou então as mãos por baixo da nuca, e as pernas, mirou o teto e deu para reminiscências.
Viu-se com cinco anos de idade mamando café com leite morninho numa mamadeira improvisada: uma garrafa de vidro com um bico vermelho de látex inserido no gargalo. A camisa semi-abotoada não impedia sua barriga protuberante de lombrigas de mostrar-se para quem quisesse ver.
Ao se lembrar das lombrigas lembrou-se também do lombrigueiro, da mistura - sal amargo? óleo de rícino? sal de glauber? - que sua mãe resolvera meter goela abaixo de todos naquela tarde quente. Tratamento de choque! A turma se juntou no caramanchão para o sofrimento sincrônico e compartilhado, estirados no chão, a se contorcer de dores e revoluções abdominais, suando bicas. As lombrigas, se morreram, foi por causa do intenso movimento peristáltico dos intestinos que as surraram até o aniquilamento!
Lembrou-se que corria das picadas das abelhas - havia um enxame delas no quintal de sua casa - mas também do favo de mel na época da colheita. Pensou que a vida é assim, feita para se fugir da dor e, em alguns momentos, saborear o prazer.
Durante algum tempo acreditou que azeitona era carne. No dia que tinha azeitona no prato não tinha carne. Então ligava uma coisa à outra. E tinha também a textura e o gosto peculiar da azeitona: aquilo definitivamente não era um vegetal! E ficou imaginando um bicho qualquer de onde brotasse azeitonas ao invés de pêlos. À medida que iam nascendo e crescendo iam sendo tosadas... e comidas.
Recordou-se indo para a escola dentro do par de sapatos de borracha. Do sonho que tinha de ter um conga, ou um bamba, quiçá um kichute. Os pés, sem meias, suavam dentro dos sapatos invariavelmente trincados no calcanhar. Enquanto andava, shilept shilept shilept do suor lamoso dos pés dentro dos sapatos e do chulé. Riu-se das vergonhas que passara quando tinha que tirar os sapatos na frente de estranhos. Em casa não tinha problema, porque em casa todos já se haviam acostumado com os odores dos sapatos uns dos outros. Também pudera, era o mesmo odor fétido provocado pela mesma colônia de bactérias, saudáveis do mesmo caldo de cultura.
E reviveu o dia em que chegou todo engomadinho na escola, feliz da vida, com as roupas novas de segunda mão que ganhara de alguém lá do Rio de Janeiro. Mal chegara e fora objeto da chacota dos colegas “aí, heim, usando roupa de menina”. É que a camisa e a calça tinham a abotoadura e braguilha do lado direito sobre o esquerdo e, portanto, eram camisa e calça de mulher. A sua felicidade restou vermelha de humilhação. Nunca mais usou aquelas roupas e passou a conferir todas as outras que ganhou dali em diante, principalmente as originárias do Rio de Janeiro.
Creu que fora por causa dessa ou de outras que se limitara a ser apenas um bom jogador de ping pong, um esporte individual, solitário. Desse modo travava uma batalha consigo, de si para si, sozinho, separado e sem crítica externa.
Algum barulho lhe chamou a atenção e conferiu novamente o relógio. Estava mais que na hora de se levantar para ir para o trabalho. Levantou-se e tomou banho, como sempre. Escolheu no guarda-roupa as suas melhores, mais bonitas e mais caras roupas para sair naquele dia. Conferiu a abotoadura da camisa e da calça, para confirmar se eram mesmo masculinas (trauma de infância!). Selecionou seu melhor par de sapatos. Perfumou-se de Armani. Ajeitou e tomou um café da manhã farto de frutas, sucos, cereais, pães, geléias, bolos, o quê pudesse, o quê tivesse - e tinha!
Saciado, encaminhou-se até a porta. Estava quase atrasado para o trabalho. Antes de trancá-la cismou de voltar. Abriu a geladeira, pegou uma azeitona graúda, colocou-a na boca e fechou os olhos, absorto - talvez quisesse conferir se azeitona era carne mesmo ou não!
Foi-se.
Para o José Maria Rabelo, um companheiro de infância que tive a grata satisfação de reencontrar.
A azeitona
07 de Junho de 2008, por Rafael Chaves