Acordou cedo, como sempre. Olhou a claridade do dia entrando pela janela aberta, como sempre. Esfregou os olhos com as mãos, como sempre ‘‘hoje não chove não!’‘. Conferiu a hora, como sempre. Coçou o que estava lhe coçando, como sempre. Ligou o rádio, como sempre ‘‘manhãããã sertaneeeeja...’‘. Levantou-se, como sempre. Calçou os chinelos, como sempre. Pegou a toalha de banho, como sempre. Acendeu o fogão, ou melhor, a trempe do fogão, como sempre. Colocou sobre a chama uma panela com água para fazer o café, como sempre. Foi tomar banho, como sempre. Ligou o chuveiro, como sempre. Despiu-se, como sempre. Entrou no box, molhando-se na ducha morna, como sempre. Enxampuou os cabelos, como sempre. Escovou os dentes, como sempre ‘‘hoje não preciso fazer barba não!’‘. Ensaboou-se, como sempre. Enxaguou-se, como sempre. Desligou o chuveiro, como sempre. Enxugou-se, como sempre. Dirigiu-se a pia, como sempre. Tomou o pente, como sempre. Pôs-se a pentear os cabelos, como sempre. Olhou-se no espelho... ‘‘esse aí sou eu?!’‘.
Mirou-se no espelho como nunca havia feito antes. Não como sempre o fizera, mas de maneira diferente, inusitadamente. ‘‘Estou velho!’‘, exclamou para que seus ouvidos ouvissem. Aproximou a cara do espelho e balançou de um lado a outro enquanto conferia os cabelos ‘‘nossa!... estão todos brancos!’‘. Aproximou-se mais ainda e não deu conta das inúmeras marcas no seu rosto. Olhou-se nos próprios olhos ‘‘meus olhos, meus olhos estão sem brilho!’‘. Levou as mãos ao rosto e reproduziu ‘‘O Grito’‘, de Munch ‘‘oh! Quê fiz da minha vida?! onde estou? quem sou?’‘ . Lembrou-se da sua juventude, dos seus sonhos, das suas esperanças. ‘‘Deixei a vida me levar...’‘, parodiou Zeca Pagodinho; entretanto não havia alegria de pagode nessa constatação, estava mais para uma consternação de réquiem.
Tentou voltar à realidade, à rotina de sempre, a que nunca lhe trazia preocupações, tomando novamente o pente para levá-lo aos cabelos. Desistiu. Antes, foi interrompido por novos pensamentos, novas reflexões. Jogou o pente longe, deixando os cabelos desarrumados. Arreganhou os dentes e fez careta para si próprio. ‘‘Espelho, espelho, por que deixaste os meus olhos enxergarem dentro de mim? Estava tudo tão bem quando eles enxergavam somente de dentro para fora.’‘ O problema não estava mais nos seus cabelos brancos ou nas suas rugas. A questão era a dúvida. O que o incomodava era saber o que fizera de sua vida. Tudo passara tão rápido, tão imperceptível ‘‘será que terei tempo para mudar alguma coisa?’‘. Creio que nessa hora pensou em quantas pessoas iriam ao seu enterro ‘‘alguém sentirá a minha falta?’‘.
Não é que quisesse filosofar, achar um significado para tudo. Ele quisera ter sido alguém: alguém que não passasse simplesmente pela vida, alguém que realizasse algo de valor, alguém que pudesse ser lembrado na mente e no coração das pessoas. Trabalho, casa, carro? Isso para ele não era realização, não era importante. E intrigava-o o fato de que o espelho estivesse ali todos os santos dias de sua existência pra mostrá-lo a si próprio, mas ele nunca se permitira, nunca achara tempo. ‘‘Devia ter me olhado mais no espelho’‘, balbuciou.
Um cheiro quente invadiu o banheiro. Pensou em deixar pra lá e em continuar se olhando no espelho, mas lembrou-se da água que deixara para ferver no fogão ‘‘ihh, a água do café...’‘. Acorreu à cozinha e desligou o botão de acendimento da trempe. O alumínio da panela perdera o brilho, tornando-se opaco e com laivos escuros nos fundos e nas laterais. Já não havia nenhuma gota d’água dentro dela, evaporara.
Não havia tempo para mais nada, para esquentar outra água ou olhar-se no espelho. Tinha que ir trabalhar. Rotina. Ainda pensou, olhando o espelho e a panela, alguma coisa assim como ‘‘ou você se conhece e acompanha o que acontece ou tudo se esvai...’‘.
O espelho
16 de Novembro de 2008, por Rafael Chaves