Houve, houve sim um tempo em que não havia televisão. Então havia outros meios de o povo se divertir: o cinema e o teatro. Isso sem falar naquela diversão que gerava uma prole numerosa, que brotava não só pela falta de televisão, mas também ou devido à escassez de apresentações de peças de teatro ou de filmes nos cinemas, ou pela conjunção desses fatores todos e outros, mas que é melhor não tentar explicar e deixar para lá.
O teatro veio antes do cinema, assim como a televisão veio após o cinema, pois o teatro não dependia de tecnologia praticamente nenhuma. Precisava sim é de uma boa história. As cidades pequenas, quase todas, tinham seu cinema e seu teatro. Em Resende Costa estão aí o CPP e o Teatro Municipal que confirmam essa regra. Depois do advento da televisão, as salas de cinema e os teatros – e a prole – diminuíram sensivelmente.
Eu me recordo de, quando pequeno, em São João del Rei, assistir a seriados nas telas meio improvisadas do Sindicato (acho que era o Sindicato dos Ferroviários, do tempo da EFOM – Estrada de Ferro Oeste Mineiro, que se reduziu ao trenzinho de Tiradentes, sei não...), onde invariavelmente o mocinho “quase” morria no final do episódio para ressuscitar milagrosamente no próximo, para o bem e a salvação da humanidade. A vida era simples assim: vivíamos entre a vida e a morte, entre a salvação e o pecado, entre o mocinho e o bandido, nada mais.
E, também, de ter assistido a umas peças de uma companhia de teatro que instalou um galpão de paredes de folhas de zinco e telhas de amianto num terreno descampado ali onde hoje é a garagem da Viação Sandra. As peças, românticas e lacrimosas, às vezes trágicas (encenaram “O Ébrio”...), quase sempre terminavam num longo e apaixonado beijo, para o bem e a felicidade do casal. Eu, nesse tempo, pensava em aprender a dar beijo na minha primeira namoradinha que morava ali perto, então ficava observando como eram os beijos dos casais em cena: queria fazer igual. O amor era simples assim!
O caso que eu vou contar agora é um tanto anterior, acontecido – dizem – no início do século passado, em Coronel Xavier Chaves. No porão de um sobrado estavam reunidos os atores que encenariam a peça daquela tarde. Ensaiavam. Certa altura, com a voz grave e eloqüente, Tobias disse:
- ... então sacou da pistola e deu um tiro na cabeça!
Depois dessa exclamação, um silêncio constrangedor e pudico tomou conta dos atores. E o tempo parou à espera de algum acontecimento. Finalmente Tobias, entendendo o silêncio do tempo, interrompeu o ensaio:
- Essa parte não ficou boa não! Vamos repetir! – e o ponteiro do relógio voltou a tiquetaquear de segundo em segundo.
Os personagens voltaram aos seus lugares até que, certa altura, com a voz grave e eloqüente, Tobias disse:
- ... então sacou do revólver e deu um tiro na cabeça!
Um refrigério consolador tomou conta dos atores que, nesse instante, embora a peça assim não o previsse, embora nem coubesse porque, ao contrário, uma morte sinistra se anunciava, suspiraram aliviados. Tobias também “que se dane Shakespeare!” se alegrou de si mesmo, apesar da notícia fúnebre que profetizava, satisfeito com a sua douta solução ao substituir “pistola” por “revólver”. E todos concordaram que não ficaria bem, apesar de ninguém ter dito isso claramente um ao outro, que, ante a platéia, naquela tarde dominical, se pronunciasse palavra tão ambígua, quase de baixo calão.
Chegara o dia. O povo se amontoava, depois da missa, diante do palco de madeira montado na praça, enquanto aguardava... E quando a cortina se abriu o encanto tomou conta do burburinho, o sol reacendeu e ascendeu do ocaso iluminando o palco... A certa altura, com a voz grave e eloqüente, Tobias disse:
- ... então sacou do revólver e deu um tiro na cabeça da pistola!
Então o tempo parou! O silêncio que tomava conta da platéia contaminou os atores que, estupefatos, transformaram-se em estátuas vivas. O sol se apagou buscando esconder-se atrás das montanhas. E as trevas tomaram conta dos espíritos.
Até que se ouviu a claque. E a multidão “claqueou” também. E o relógio voltou a tiquetaquear...
Para a Tereza, minha irmã, que pagou meus ingressos para assistir a “O Ébrio” e outras. Graças a ela acho que arendi a beijar.
O tiro que saiu pela culatra
11 de Outubro de 2008, por Rafael Chaves