Gastronomia

Mercado Central de Belzonte

14 de Julho de 2016, por Cláudio Ruas 0

Se Belo Horizonte, ou melhor, “Belzonte”, é uma das capitais mais cosmopolitas em relação ao seu estado, com forte povoamento e ligação com todos os cantos do seu interior, o Mercado Central da cidade é uma prova viva disso. O que se vê ali é um resumo de um povo e de seu estado - que por sinal mais parece um país - dentro de um quarteirão bem no centro da cidade.

É botar os pés lá dentro para se sentir em outro mundo e ao mesmo tempo em todas as grotas das minas de tantos gerais. Do sul dos cafés ao norte das cachaças, passando pelos queijos, doces, carnes, verduras e artesanato do meio do caminho, inclusive nossos tapetes de tear de Resende Costa. Não há como não se encantar.

Quase noventa anos de história, umas 500 lojas e uma boa chance de se perder nos seus corredores em forma de cebola. Mas se perdendo lá dentro é que você se encontra nesse lugar de tanta hospitalidade, que deve ser passeio obrigatório de todo forasteiro que chega a nossa capital. No meu caso, é visita compulsória semanal, nem que seja para cortar caminho no centro da cidade.

O Mercado Central tem de tudo, até bicho vivo. Mas embora tenha coisas que se encontram em outros lugares, certos produtos você só vai achar por lá, pelo menos no quesito qualidade e variedade. Daí vem essa permanente necessidade de frequentar o local.

Talvez o produto que mais atraia as pessoas até lá é o queijo. Sobretudo o tradicional queijo mineiro artesanal, que é vendido aos milhares por ali todos os dias. E da forma antiga, como tem que ser, analisando visualmente com calma, sem embalagem, pedindo para sentir com as mãos, provando um pedacinho, assuntando com o vendedor. Ao contrário da frieza industrial dos supermercados de atualmente, em que somos postos cada vez mais distantes do produto, do produtor e do vendeiro.

Além das bancas de bacalhau, azeitonas, castanhas e frutas secas, as lojas de pertences de feijoada também movimentam bastante o mercado, com toda sorte de defumados, embutidos, carnes salgadas e frescas, leitoa, frango caipira e muito motivo para beber uma. Para afundar todos esses pertences, feijões sortidos a granel são vendidos na mercearia à moda antiga que ainda sobrevive por lá. Enquanto o feijão é pesado, vale dar uma cafungada na loja ao lado, que tem o aroma mais incrível do mercado, uma mistura de fumo de rolo, alho descascado, pimenta e café moído na hora.

Ainda no mesmo corredor, bancas de dois personagens dos mais antigos do lugar, ambos “reis” do mercado há mais de meio século: Sô Amorim, o “Rei do Fubá”, e o “Percy, o Rei do Alho”. Assim como muitas outras figuras de lá, dedicaram a vida toda ao sacrificante ofício de segunda a segunda, mas não arredam o pé dali. O mercado, o fubá e o alho são a vida deles. E é muito bom poder consumir isso também.

Entre as lojas dos dois reis, vale uma parada em uma das banquinhas típicas do mercado: feijão andú fresco, chuchu de vento (maxixe fofo), mamão verde para refogar, fava, jurubeba, quiabo estrela, buquê de semente de coentro etc. Boa parte de costume mais das bandas de cima de Minas, que também são representadas pela manteiga de garrafa, a farinha e a carne de sol.

Outros símbolos da gastronomia mineira também têm presença maciça por lá, como as pimentas, as cachaças e as panelas. Sobretudo as de ferro fundido e de pedra sabão. Biscoito de queijo, pão de queijo com pernil, broinha de fubá de canjica, empada de jiló, abacaxi no saquinho, cafezinho sempre fresco e a limonada cinquentenária do Sô Gabriel são os lanches mais tradicionais e deliciosos do mercado.

Os butecos são únicos, com seus clássicos petiscos de chapa, caso do famoso fígado de boi acebolado com jiló, receita símbolo do Mercado Central. Combinação perfeita! A maioria dos bares têm a peculiaridade de ficarem espremidos em um beco entre corredores, somente com um balcão democraticamente compartilhado para se beber de pé. Também democrático é o almoço delicioso e caseiro do tradicional Restaurante do Jorge Americano, um dos pfs mais bacanas da cidade, assim como o do Casa Cheia.

Daria para encher esse exemplar todo do jornal só falando do Mercado Central de Belzonte. Um dos mercados mais famosos e admirados do Brasil, bem organizado, limpo, seguro e de riqueza cultural ímpar. Cheio de história e um grande futuro pela frente. E muito amado.

Uma história natural da transformação

16 de Junho de 2016, por Cláudio Ruas 0

Cozinhar nos proporcionou não apenas a refeição, como também a ocasião: o costume de comermos juntos num momento e num lugar determinados. Isso representa um fenômeno novo, já que o homem que saía em busca de alimentos crus provavelmente se alimentava enquanto se deslocava e sozinho, como todos os outros animais. (Ou, se pararmos para pensar, como os comedores industriais em que nos transformamos recentemente, mordiscando qualquer coisa em postos de gasolina e comendo sozinhos, não importa quando e onde.) Porém, o ato de nos sentarmos para fazer uma refeição em comum, olhar nos olhos uns dos outros, compartilhar a comida e nos comportar com certo decoro, tudo isso serviu para que nos civilizássemos. “Ao redor do fogo”, escreve Richard Wrangham, “nos tornamos mais domesticados”.

Portanto, cozinhar nos transformou, e não apenas por nos tornar mais sociáveis e corteses. Uma vez que o ato de cozinhar permitiu que expandíssemos nossas capacidades cognitivas à custa da capacidade digestiva, não havia mais como voltar atrás: nossos cérebros grandes e intestinos pequenos dependiam agora de uma dieta à base de alimentos cozidos. Isso quer dizer que cozinhar tornou-se compulsório – está, por assim dizer, cozido na nossa biologia. O que Winston Churchill afirmou um dia a respeito da arquitetura: “Primeiro damos forma às nossas construções, e então elas dão forma a nós”, também poderia ser dito sobre o ato de cozinhar. Primeiro, cozinhamos nossa comida, e depois ela nos cozinhou.

Bom, na verdade esse colunista deveria ter colocado aspas nesses dois parágrafos aí de cima, mas, para não assustar, preferiu avisar só agora que quem disse isso foi um tal de Michael Pollan. Um cabôco genial, que vale a pena conhecer. Ele é americano, escritor, historiador, meio cientista, cozinheiro, boa prosa e boa gente (aposto!). E com seu trabalho tenta analisar e redescobrir a “experiência fascinante de transformar os alimentos”, relatando experiências e mergulhando em “história tão antiga quanto da própria humanidade”, mas de uma forma leve e interessante. Tudo isso através do que os seres humanos “cozinheiros” chegaram a criar com os quatro elementos da natureza – fogo, água, ar e terra – como churrasco, ensopado, pão e cerveja, respectivamente.

Anota aí o nome do livro: “Cozinhar – uma história natural da transformação”, da editora Intrínsica. E o bacana também é que foi feita uma mini-série chamada Cooked, de quatro capítulos (cada um sobre um elemento da natureza) protagonizada pelo próprio Michael Pollan, e disponível na internet no tal do Netflix. Que, aliás, é um site de filmes, séries, documentários, e tal, que tem sido a fuga natural de muitos da (cada vez mais terrível) televisão. Custa só uns vinte merréis por mês, e pode ser usado por até cinco pessoas.

Confesso que comecei a ler o livro hoje mesmo e mal virei o morro do primeiro capítulo, mas, depois de já ter visto a série da internet e lido algumas reportagens e entrevistas interessantíssimas do cobôco, não pude deixar de assuntar com vocês, que se dão ao trabalho de ler essa coluna e de cozinhar.

O autor - que já foi considerado uma das cem pessoas mais influentes do mundo - é um grande defensor da ideia de que é elementar para os seres humanos o ato de cozinhar, de entender os seus processos e vivenciá-los através de uma maior proximidade com o ingrediente, a natureza e o próximo. E como isso interfere profundamente em nossas vidas, em nosso mundo. Consequentemente, faz uma crítica (sóbria) ao estilo de vida “moderna”, em que os alimentos prontos afastam cada vez mais a grande maioria da cozinha, das suas origens e uns dos outros, trazendo assim prejuízos de todas as ordens. Ele traz ainda uma questão interessante e contraditória: muitos têm passado bastante tempo assistindo a programas de gastronomia na tevê, lendo revistas e navegando por saites e perfis da internet relacionados à comida. Mas, ao mesmo tempo, não têm se dedicado de fato ao ato de cozinhar e, mesmo que o façam, o tempo gasto na cozinha é bem inferior àquele destinado ao entretenimento do assunto.

 

Agora usando aspas (pra valer), termino com o primeiro e conclusivo parágrafo do livro: “A certa altura, já no fim da meia-idade, fiz uma descoberta inesperada, porém feliz: muitas das perguntas que mais me preocupavam tinham na realidade uma única resposta – cozinhar.

Convite

12 de Maio de 2016, por Cláudio Ruas 0

Há três anos atrás nossa Resende Costa “abriu seu baú” de retalhos, colchas, histórias, artesanatos e cultura em geral. Foi então realizada a primeira mostra de artesanato e cultura da cidade, atendendo uma demanda antiga e emergencial, haja vista a importância de um evento dessa natureza para uma cidade detentora de tantos tesouros. Como já assuntamos por aqui, a realização de um festival é de suma importância para valorização, resguarde e divulgação do nosso produto, da nossa cidade e da nossa cultura.

Pena que ainda nem todos se atentaram para isso, mas a quarta edição consecutiva do evento está vindo aí para reverter esse quadro, mesmo com todas as dificuldades financeiras e organizacionais. Agravadas ainda por uma questão cultural de parte dos cidadãos resende-costenses, que dificulta um trabalho coletivo em prol da valorização dos nossos produtos e de um bem comum, e não somente individual. A união entre os comerciantes/produtores, aliado ao apoio do poder público e da população local é a base do sucesso econômico, social e cultural da nossa atividade, bem como de tudo que gira em torno dela. E é disso que precisamos, sobretudo nos tempos sombrios de crise financeira.

A ASSETURC (Associação das Empresas do Turismo e do Artesanato de Resende Costa) e o poder público municipal uniram seus esforços e, com apoio de outros órgãos, entidades e pessoas, permitiram que nossa cidade fosse presenteada com essa festa, entre os dias 26 e 29 de maio, com diversas atrações: música, exposições, oficinas, gastronomia, e coisa e tal.

Fica então, em nome do Jornal das Lajes (apoiador do evento), o convite a todos os leitores para fazerem parte dessa festa, inclusive àqueles que estão longe da nossa cidade, até porque a data também foi pensada neles, já que ocorrerá no feriado de Corpus Christi.

Convido também os interessados que tiverem coragem de provar a comida desse colunista, na oficina de gastronomia que ministrarei juntamente com minha companheira de vida e de cozinha (Casal Gastrô-MG). Tivemos o privilégio de participar da primeira edição da mostra e agora estamos de volta para tentar compartilhar um pouco do nosso trabalho e da nossa cozinha. Cozinha pautada na simplicidade e na valorização dos nossos produtos, produtores e tradições, através de uma cozinha mineira com um olhar novo, mas sempre com os pés no chão dos nossos quintais.

Por fim, convido agora a irmos para a cozinha preparar o prato que foi executado na oficina de gastronomia da primeira edição da mostra:


PARAFUSO COM LINGUIÇA E ORA-PRO-NOBIS

Ingredientes (porção para 4 ou 5 pessoas):

- 1 pacote de 500g de macarrão parafuso (ou gravatinha, de preferência do tipo “grano duro”);

- 1 prato bem cheio de folhas de ora-pro-nobis (inteiras ou rasgadas);

- 700g de linguiça de porco fresca artesanal;

- 1 cebola roxa grande e 1 cabeça de alho roxo cortados em tiras compridas;

- 300g de tomate siriguela (ou cereja) cortados em tiras;

- 1 xícara de pimenta biquinho em conserva;

- Sal, pimenta do reino, pimenta passarinho, azeite, colorau, açafrão da terra, cheiro verde e queijo a gosto.

 

Preparo:

- Retire o recheio da linguiça diretamente em uma panela ou frigideira grande e refogue-o com um fio de azeite (nosso tradicional disco de arado é ótimo para o preparo);

- Depois que a água da carne secar, adicione um pouco mais de azeite e uma colher de chá de colorau, misture bem e frite até que os pedaços fiquem bem dourados;

- Acrescente a cebola, o alho e o ora-pro-nobis e refogue por 3 minutos, desligue o fogo, adicione o tomate, a pimenta biquinho e a pimenta do reino (moída na hora);

- Em outra panela grande, cozinhe a massa com bastante água, sal e açafrão até que ela fique praticamente cozida;

Dica: como a massa continua cozinhando sozinha é sempre bom retirá-la um pouco antes, para que fique “ao dente”, como dizem os italianos. Sentir a textura da massa no dente é importantíssimo, o que infelizmente não se faz aqui no Brasil.

- Com uma escumadeira, transfira a massa ainda quente diretamente para a panela do refogado (um pouco da água do cozimento que vier junta será bem vinda), acrescente azeite, o cheiro verde e misture com cuidado;

- Sirva com queijo (ralado ou em cubinhos) e pimenta passarinho/cumari a gosto.

 

Bão apetit!

Xegamais!

14 de Abril de 2016, por Cláudio Ruas 0

“Xego” sim, com o maior prazer. Afinal de contas, com aquela comidinha caseira de alto nível, tem mais é que “xegar” mesmo, nesse restaurante familiar que já vem se confundindo com a história da cidade há quase três décadas. Desde os tempos em que nossos hábitos alimentares eram outros, e sair para comer fora era um tanto quanto exótico em uma cidade pequenina do interior de Minas, que por sinal quase não recebia turistas ou forasteiros.

O próprio nome do restaurante já nos remete ao ambiente familiar e à hospitalidade mineira que ele representa muito bem. É um chamado para que o cliente praticamente entre na casa dos proprietários, que fica na parte superior do restaurante, aliás. Talvez por isso mesmo que os filhos dos donos e fundadores Zainha e Maria Ângela - a Ana Paula, o “Serginho do Xegamais” e o Bruno – façam parte da equipe, cozinhando tão bem naquele ambiente em que cresceram. Não é à-toa que certos negócios familiares costumam dar certo, prosperar e durar no mercado. Além do norrau criado e passado via DNA, no setor de hospitalidade a identidade familiar do negócio também conta para o cliente. Ser atendido por uma família que trabalha junto – e muito - há anos, a começar pelo próprio dono na porta do estabelecimento, faz diferença. Se a comida for ótima, farta e o preço justo, o sucesso e a longevidade são praticamente garantidos.

Em tempos de tanta adoração à gastronomia, sobretudo aquela dita como mais sofisticada, contemporânea, a comida caseira e tradicional vem passando por momentos distintos e curiosos. Inicialmente, diante da aparição e acesso a essa nova gastronomia, ela foi, digamos, deixada de lado. Os olhos e bocas começaram a se voltar para comidas mais elaboradas, ingredientes e técnicas do outro lado do mundo, a figura do chef de cozinha e tal. A população passou a enxergar o alimento de outra forma, a mídia deu mais destaque, vieram as revistas, programas de tevê, cursos e escolas, até de nível superior. Muito bacana e necessário. Porém, de carona também vieram o exagero e a abominável “gourmetização” da comida, dando-se, sobretudo nos maiores centros, exacerbado valor ao glamour da coisa, ao nome complicado do prato e sua montagem, aos estrelismos do chef etc. Com isso, em muitos casos, deixou-se de lado o conteúdo, a comida encareceu, diminuiu de tamanho e a satisfação se tornou duvidosa.

Por outro lado, a comida caseira e tradicional, com gosto de afeto, vem voltando a ocupar o espaço e a atenção que perdeu nos últimos tempos, e vem ganhando até um destaque que talvez nunca tenha tido. Em que pese o fato de que ambos os tipos de cozinha podem – e devem – coexistir, é inegável a importância da nossa cozinha em grande parte do tempo de nossas vidas. Daí a necessidade de tê-la com maior facilidade, não só nas nossas casas, mas nos restaurantes também.

Aí entra uma questão delicada: apesar de parecer o contrário, a comida caseira e tradicional é das mais difíceis de se fazer - e vender. A começar pelo fato de que ela é a que mais conhecemos, que mais foi exercitada e aprimorada pelas cozinheiras, ou seja, somos acostumados com o muito bom. Sobretudo aqui nas Minas Gerais. Diferentemente de uma comida contemporânea ou “de fora”, que às vezes nem sabemos pronunciar seu nome e, se estivar mal feita, poderá passar desapercebida em alguns casos, pois não existe um parâmetro seguro de comparação. Em segundo lugar, ainda há o fato de que as técnicas da nossa comida caseira e tradicional não são devidamente sistematizadas e encontradas em livros e escolas (ainda). Portanto, o cozinheiro, por mais profissional e bom que seja, mas que nunca fez nem viu fazer um frango caipira com quiabo e angu, demorará muito tempo para chegar perto daquele que sua avó faz todos os domingos, durante décadas.

 

É por isso que admiro cada vez mais quem consegue reproduzir com perfeição a comida que minha avó, a Trindade do Góes, fazia. É por isso que torço para ter chuchu refogado quando vou ao Xegamais, cozido no ponto certo e com o sabor pontual do tempero de alho, elevando um ingrediente tão simples e desprezado a outro patamar. É por isso que hoje entendo (com muita admiração) por que o Serginho já fazia um arroz tão soltinho e uma caipirinha tão profissional nas gandaias de antigamente, quando ainda éramos adolescentes farristas em Resende Costa, vinte anos atrás. É por isso.

Bloco do Fugão

17 de Marco de 2016, por Cláudio Ruas 0

Sim, é “fugão” com “u” mesmo, do jeitinho que normalmente pronunciamos. O que, aliás, não poderia ser considerado tão errado assim do ponto de vista linguístico. Que meus pais professores de português não leiam isso, mas sempre me perguntei por que a escrita muitas vezes caminha tão distante da nossa realidade? Não só a escrita, mas muitos de nossos costumes também, inclusive os festeiros, sobretudo o carnaval que acabou de passar. Por que dependemos tanto do poder público para nos divertirmos ou manifestarmos culturalmente? É um assunto complexo e que demanda bastante reflexão, mas, enquanto isso, tem um pessoal por aí que vem curtindo o carnaval por conta própria e de uma forma única e genial: a turma do “Bloco do Fugão”.

Se a cozinha é o coração da casa de um bom mineiro, o fogão de lenha seria o sangue que nele corre. Somos apaixonados por essa tecnologia criada há milhares de anos e que perdura até hoje e tem tido mais espaço e valorização, até nas cozinhas mais modernas. O uso controlado do fogo, como já assuntamos por aqui, foi responsável por uma enorme revolução na vida dos seres humanos, uma vez que permitiu não só aquecimento e proteção, mas um maior aproveitamento energético dos alimentos cozidos. Aí, sobrou mais tempo para exercer outras atividades e assim nos desenvolvemos. E o encantamento com aquela chama mágica continua aceso, sendo esse bloco uma prova ambulante disso.

Para quem não teve o prazer de conhecê-lo, explico melhor: o “Bloco do Fugão” gira em torno do seu carro alegórico – para não dizer calórico – que nada mais é do que um fogão de lenha movediço, sobre rodas, e movido por tração humana (e pinga também!). Existe ainda um carrinho de apoio para levar o combustível, a lenha. Se ela não o move, ela o faz fumegar pelas ruas da cidade, espalhando seu cheiro delicioso que se mistura com o das iguarias nele preparadas: linguiças, carnes, torresmos e o inseparável escudeiro angu. Tem até a vara de bambu com as linguiças dependuradas em riba do fogo, que vão se enfumaçando de sabor ao longo do percurso.

Outro detalhe interessante: o fogão é feito de barro, à moda antiga, e é re-construído todos os anos às vésperas do carnaval, quando a turma se junta no ritual de amassar o barro. O “Lili Tatu”, com seus pés enormes, é o responsável pelo amassamento. O fogão ainda tem como um dos seus condutores um motorista de luxo, nosso amigo “Budinha”, sujeito bom de roda que há anos carrega com segurança e presteza os resende-costenses nas idas e vindas da capital.

Mais um detalhe interessante: o bloco é aberto e os comes e bebes não são restritos aos integrantes encamisados, mas a todos aqueles que se aproximam ao longo do desfile, que já começa pela manhã, despertando a curiosidade de todo mundo na cidade. Nesse ano presenciei uma cena de um turista do Rio de Janeiro que veio eufórico tirar fotos e manifestar seu encantamento com aquilo tudo, inclusive se surpreendendo com o fato de que a cachaça e a pelota de angu com torresmo quentinho oferecidos na hora não eram cobrados.

Ao contrário do que era de se imaginar nos dias de hoje, o que ali é servido não custa dinheiro. Os insumos são doados pelos participantes e entusiastas do bloco, e compartilhados com aqueles à volta do fogão. Isso reflete a generosidade e o acolhimento do nosso povo mineiro, que ao invés do dinheiro alheio, ainda prefere em troca seu sorriso, sua companhia, sua gratidão.

 

Acredito que por isso também o “Bloco do Fugão” vem dando certo ao longo de quase uma década, sem visar o lucro e sem depender dos cobres daquele que vem beber uma, ou então do poder público. Infelizmente vivemos em uma sociedade cada vez mais refém e dependente (do dinheiro) desse poder, sobretudo no que diz respeito à diversão e às manifestações culturais como um todo. O poder público pode – e deve – dar as condições básicas para que isso aconteça, até porque elas fazem parte do bem estar social. Mas precisamos caminhar mais pelas próprias pernas, senão, um dia esse fogo apaga de vez.