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A técnica que vem da roça

15 de Setembro de 2017, por Cláudio Ruas

Quando se fala em técnica de cozinha logo pensamos em brunoise, bouquet garni, confit, poché e várias outras palavras, a maioria delas, claro, de origem francesa. Pensamos também que a técnica está ligada às escolas de gastronomia, às cozinhas profissionais, aos chefs etc. Mas, ao mesmo tempo, não percebemos muito bem que as técnicas estão muito mais presentes do que parece na nossa cozinha de casa. Principalmente na cozinha mineira de roça, de raiz.

Podemos começar a ilustrar a variedade de técnicas culinárias das cozinhas mineiras com um dos seus símbolos: o queijo. Uma senhorinha queijeira que dedicou a vida a fazer queijos maravilhosos e perfeitos tecnicamente não saberia explicar o lado técnico/científico que envolve todo o processo de elaboração. Não sabe nem o que seria um fermento lácteo. Mas sabe, como ninguém, que para o queijo ficar bom mesmo é preciso adicionar um pouco daquele líquido que pinga no processo do dessoramento do queijo do dia anterior, o “pingo”.

Sabe também que, antigamente, quando não havia coalho industrializado, bastava tirar uma pequena raspa do interior do estômago do tatu e misturá-la ao leite, sem nem imaginar que ali teria enzimas que agem na digestão de proteínas, fazendo com que o leite coalhe. Essa mesma senhorinha também sabia que o estômago do tatu precisava ser desidratado e curado, embora não conhecesse esses termos. E o fazia dependurando-o na vara que ficava em cima do fogão de lenha, defumando-o juntamente ao lado das linguiças e peles de porco, que assim se manteriam conservadas e longe dos bichos, graças à técnica de estocagem e ao utensílio de bambu.

As linguiças e peles que ali estavam vieram da matança do último “capado”, quando foi organizada uma brigada de cozinha formada por parentes e vizinhos, capaz de dar conta das diversas tarefas do dia. Cada um na sua função, como amolação das facas, abate, sapeca, assepsia, elaboração dos cortes, arrumação da barrigada, enchimento das linguiças e chouriços, fritura dos torresmos e elaboração da conserva das carnes na gordura. Um processo trabalhoso e bastante técnico, que demanda uma série de cuidados, conhecimentos e utensílios a princípio banais, mas elementares, como um “pau de virar tripa”, por exemplo.

Para o almoço, angu de fubá de “munho” d’água, feito de pedra “olho de mosquito”, sabiamente regulado no seu “tempereiro” para soltar o fubá mimoso, que na panela desempelotou facilmente com ajuda da estrela, o mixer manual de roça. E foi bem mexido (rebolando as “cadeiras”, inclusive) com o insubstituível “pau de angu”, no caldeirãozinho de ferro cujo fundo arredondado ajudou a distribuir o calor e cozinhar o fubá por igual, até na parte alta da panela.

Enquanto isso, com limão e cachaça, tirou a “maldade” e cozinhou a suã - que estraga fácil e não vale a pena armazenar - pingando água aos pouquinhos enquanto ela fritava, sem nem saber o que significa “deglaçar”. De sobremesa, doce de abóbora preparado com cal e cozido no tacho de cobre, que foi bem limpo com limão capeta, para matar o zinabre.

Vejam só o tanto de técnicas culinárias empregadas apenas nesse pequeno exemplo de um dia na roça! Temos uma infinidade impressionante de metodologias ao redor dos nossos fogões de lenha. Mas sofremos com uma falta de melhor sistematização em livros e escolas. Temos muitas receitas catalogadas, mas poucas técnicas. E precisamos aproveitar esse novo momento glorioso da gastronomia para colher, sistematizar e passar adiante tantos ensinamentos que nossas mestras e mestres da gastronomia mineira têm a oferecer. Enquanto é tempo. Trata-se de conhecimento de extremo valor e que, infelizmente, já não é mais passado para a geração seguinte como outrora. Temos que correr, antes que as mãos sábias e calejadas pelo fogo e pelo tempo dependurem seus aventais de vez.

 

As donas de casa não conheciam a ciência da alimentação, mas eram exímias na arte da alimentação, o que vale muito mais.” (Gilberto Freire, Casa Grande & Senzala, 1933, p. 158)

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