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Igarapé bem temperado

11 de Outubro de 2017, por Cláudio Ruas

De acordo com a língua tupi, “igarapé” significa “caminho de canoa” e se refere a um pequeno córrego, de pouca profundidade, que segue mata a dentro. Igarapé também virou nome de uma cidade da região metropolitana de Belzonte, às margens da três oito um, sentido Sul de Minas. Embora tenha sofrido os efeitos da proximidade com a capital, a cidade ainda preserva uma forte cultura gastronômica mineira de raiz. De olho nisso, um admirável grupo interessado em valorizar e resguardar esse atributo tão importante, acabou criando um festival de gastronomia muito interessante e singular: o “Festival Igarapé Bem Temperado”.

Quem participa dessa nossa prosa por aqui sabe muito bem que a coluna de gastronomia do Jornal das Lajes sempre levantou a bandeira de valorização da nossa riqueza cultural gastronômica (e artística também), da importância dos festivais e da necessidade de se prestigiar mais as figuras detentoras do saber primitivo, sobretudo os mais velhos. E é justamente isso que o Festival Igarapé Bem Temperado preza.

Ao contrário dos demais festivais de gastronomia que ocorrem em nosso estado, o de Igarapé traz como suas estrelas as “mestras” e “mestres” da gastronomia local. Não os badalados “chefs” de cozinha da atualidade. Embora esses tenham um papel importantíssimo, inclusive no sentido de exaltação dos produtos, produtores e até técnicas da gastronomia de raiz, existe - na minha modesta opinião - um desequilíbrio em relação ao espaço dado a esses operadores. Muitos holofotes para os chefs, pouco para as cozinheiras.

Como descrito na orelha do excelente livro publicado para cada edição do festival: “O Festival Igarapé Bem Temperado é um projeto de reconhecimento, valorização e difusão da cultura da gastronomia mineira que preserva a tradição dos quintais. Há mais de uma década contribui com o empoderamento de cozinheiras e cozinheiros, em sua maioria com idade acima de 60 anos. Promove a ressignificação do patrimônio da cultura alimentar popular, fomenta a reintrodução de técnicas antigas e uso de plantas alimentícias não convencionais, contribuindo positivamente para alimentação saudável, mais justa e ecologicamente correta.”

Talvez o primeiro e importante passo simbólico da organização do evento no sentido de valorizar as cozinheiras e produtoras da cidade foi o de designá-las como “Mestras”. A partir de então foi feito um trabalho de pesquisa, conversa, visitas às cozinhas e quintais e registro de todo aquele universo de riqueza e sabedoria. Além do livro com fotos, receitas e histórias, as Mestras ainda protagonizam o festival anual, cada uma com sua barraca, vendendo suas iguarias e compartilhando conhecimento com o público durante três dias. Palestras e oficinas com elas e com chefs convidados também enriquecem bastante o evento, que esse ano contou com uma figura ilustre da gastronomia brasileira: a nutricionista, pesquisadora e cozinheira paulista Neide Rigo, grande conhecedora e difusora das plantas alimentícias não convencionais (PANC’S).

Quem não conhece a Neide Rigo vale ficar de olho no que ela fala e faz. Seja no caderno Paladar do jornal Estadão, ou no seu blog “Come-se” (uma verdadeira enciclopédia gastronômica), ou até mesmo no seu interessantíssimo perfil da rede social Instagram. Além de tudo, é uma figura humana ímpar, de extrema simpatia, simplicidade e bastante acessível, sempre disposta a compartilhar e ensinar seu vasto conhecimento – ao contrário de muitos outros atores do cenário gastronômico atual. Embora mais nova do que as de Igarapé (e de Resende Costa e de toda Minas Gerais), certamente também merece a alcunha de “Mestra”.

Saímos da roça em Resende Costa direto para o festival e assistimos duas ótimas oficinas/palestras. Uma com a própria Neide Rigo e outra com a Mestra Maria do Sindicato. Figura popular da cidade, boa de prosa, que contou deliciosas histórias e ainda ensinou uma receita bem antiga de broa de cará barbado com melado. Feita com fermento natural de fubá e com levedo de cabaça, trazendo inclusive esse utensílio de casa, que foi passado de geração em geração, assim como as leveduras nele impregnadas. Um verdadeiro show de gastronomia, de ciência, de história e de amor.   

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