Retalhos Literários

Viagens pelo mundo e pela eternidade

14 de Junho de 2020, por Evaldo Balbino 0

São as palavras em estado de arte que nos propiciam os passeios verdadeiros pelo tempo. Se não apenas elas, também elas, e de um modo único que só pertence ao discurso estético. Eu sou estas minhas mãos que escrevem, e nada mais.

Quando criança, eu me encantava com a possibilidade de uma ficção científica: a de atravessar o tempo, indo para sítios que não mais existem ou que estão no porvir. Sempre amei essa probabilidade fortemente poética porque ficcional. Eu ganhava isso em filmes, em desenhos animados, nas irrealidades que a televisão projetava e também nos livros de literatura. E essas viagens me eram dadas com regalia, com o direito de eu participar de todos os enredos ofertados infindavelmente.

Sou um mero escrevedor, alguém apaixonado pelas palavras e pelo que elas podem artisticamente nos proporcionar. Nada mais que isso.

Lembro que, certa feita, pediram para eu mesmo fazer a resenha de um livro meu a ser publicada num jornal de grande circulação. Por orgulho, não a fiz. Por orgulho sim. Mas não uma empáfia besta. Tive foi um sentimento pleno de sinceridade, de ética suficiente para não dizer de mim mesmo o que, obviamente, desejo que outros digam.

Pois desejo sim ser lido, amado. Quem não deseja isso? Quem não deseja, sob algum aspecto, ser desejado, querido, acarinhado pelo outro? Eu desejo, e o meu DESEJO é assim mesmo, em letras garrafais, imensas, imensuráveis. Não consigo desejar pouco. O mar é pequeno para o que sonho. Mesmo o mar imenso e profundo existindo distante de quem fala entre as montanhas de Minas. Aqui o mar não existe, e eu insisto em ter um sonho maior do que ele. Mas em que consiste mesmo o meu sonho? Falando aqui da literatura, da minha inserção na literatura mineira e na brasileira, o meu sonho é ser lido por pessoas que amem ler, que olhem para as palavras amorosamente, que sintam comigo o que elas, as palavras, podem dizer. Quero, enfim, que os leitores toquem o mundo como eu o toco, e sempre através das potências do verbo literariamente trabalhado.

Isso, decerto, seja sonhar muito. Talvez seja muito eu querer ser lido, querer atravessar latitudes, geografias, limites que os homens constroem pelo mundo. Maior ilusão do que a de querer atravessar o tempo não existe. No entanto, cônscio dessa grande miragem, não deixo de buscá-la para perto de mim, de abraçá-la, de tentar retê-la como, supostamente, os relógios retêm as horas. É isto mesmo: quero, pelas palavras, viajar pelo tempo, atravessá-lo com o meu pó de pirlimpimpim. E esse meu pó são as palavras que toco, que me tocam e que me dão certo poder.

E paradoxal também é querer ser lido, ser gostado, e ao mesmo tempo sentir certa timidez, certa vergonha quando alguém elogia o meu trabalho. Paciência, não é?! Cada um de nós tem seus limites, suas contradições. Eu tenho as minhas. Contudo fico feliz quando elogiam o meu trabalho. Uma felicidade indecisa, mas feliz. Tenho consciência de que faço arte, mesmo que pequena. E espero fazê-la de modo suficiente à sede humana de leitura; de modo a satisfazer, pelo menos momentaneamente, os olhos e as mentes daqueles e daquelas que, do mesmo modo que eu, vivem. Vivem e almejam viajar pelas palavras e com elas. E que vivendo todos nós possamos, também pela literatura, viver mais e cada vez mais.

De repente, talvez, as minhas constantes demonstrações de religiosidade (duma fé que se deseja inabalável mesmo sabendo que não o é) sejam um modo de eu querer penetrar o tempo, atravessá-lo para um muito além sem tempos, lá onde tudo é eternidade.

Assim, entre palavras vou escrevendo meus espantos na vida e meus desejos nela e por ela. Vou nesse ofício de gostar do que faço. Gosto de poetar. Um bom verso me faz tremer, como os trovões nos abalam nas grandes montanhas, mineiras ou não. Gosto de escrivinhar minhas garatujas. E isto me é tudo: os traços que vou traçando numa tentativa de delinear o mundo e me delinear. Sei que isso é impossível em sua plenitude, mas a tentativa é sempre válida. O desejo por si mesmo já é a coisa desejada.

E assim vou desejando com palavras que não acabam mais. As palavras alheias e as minhas, que todas são um só caminho, uma ponte única e extensa querendo unir tudo e todos entre si e com o outro lado: a eternidade. Afinal vivemos também, e principalmente, nas páginas alheias.

The walking life

10 de Maio de 2020, por Evaldo Balbino 0

Em vídeo postado nesta semana de maio de 2020 nas redes sociais, o velho e grande Lima Duarte comenta que entende a despedida do Flávio Migliaccio, que decidiu partir desta vida no início desta semana.

Lima Duarte e Flávio Migliaccio são artistas com A maiúsculo. Artistas num país em que, parece, artistas não valem nada, pessoas não têm valor, idosos são restolho de vida.

Aliás, nos últimos três anos, artistas no Brasil são tidos cada vez mais como desnecessários, e mais ainda porque o próprio poder instituído vocifera isso aos quatro ventos, com seguidores propalando violência e ódio. É o que estamos vivendo: o máximo poder político da nação e seus seguidores estão semeando o bafo podre da ditadura, da censura, do autoritarismo.

Artistas para quê? A fome de beleza, parece, está obnubilada nas cabeças de muitos. Tenho a sensação de que o ódio está vencendo a beleza, todo tipo de beleza.

Sempre acreditei e ainda luto para acreditar no Brasil. Mas este meu país tem mostrado, cada vez mais, que ele precisa ser refeito. Se instituições nãos nos guardam, se nós não nos amamos, apelemos para Deus. Mas Deus requer nossa parte na refeitura deste planeta chamado Terra. Cadê a nossa parte?!

Digo o que diria Drummond: E agora, José?.

Parabéns, Migliaccio! Parabéns, Lima! A trajetória de vocês dois, num país em que artista é vintém de cobre (Viva Cora Coralina!), é algo imenso e louvável, apesar do ódio que nos rodeia, não só em grande parte do Congresso e entre muitos dos que estão nos meandros políticos, mas também entre tudo e todos.

O ódio com roupa de morte atravessa uma sociedade – dita cristã – em que muitos estão esquecidos do que deveria ser de fato um cristão, do que deveria sem dúvida alguma ser resumo de tudo: AMOR. Aliás, foi esse sentimento que o próprio Cristo ensinou. Acrescento mais: o amor é alicerce dos grandes e evoluídos pensamentos político-religiosos, portanto não apenas do pensamento de Jesus Cristo. E mais ainda, o amor tem a ver com ética, com respeito, com diálogo, com a con-vivência, com o viver com. O que, entretanto, os chamados cristianismos muitas vezes fizeram e vêm fazendo em nome de Deus ou de Cristo não é demonstração de amor.

O vídeo de Lima Duarte deveria ser visto por todos os brasileiros. Até mesmo por aqueles que, historicamente, foram despojados duma formação que poderia ter-lhes dado acesso a uma consciência político-religiosa libertadora.

Esse mesmo vídeo, melancólico mas libertador porque portador de nobres sentimentos, foi gravado agora, em pleno mês de maio. Atravessamos, na política brasileira e na saúde brasileira e mundial, dores profundas. Mas insisto: estamos em maio. Mês de Maria, mãe de Jesus; mês das mães, das noivas e dos noivados, dos casamentos, das núpcias; mês amarelo cheio de coisas brilhantes semeando vidas.

Neste mesmo mês de maio, numa quarentena a que bilhões de pessoas estão sujeitas na Terra, assisti às até agora duas últimas temporadas da famosa série The walking dead. Milhões de pessoas, talvez, vejam essa série pelo suspense, pelo terror, pelos zumbis que, caminhando como vivos e ávidos por sangue quente, são um perigo andante pela vida. Eu, entretanto, vejo na série o que há de análise do ser humano, em todas as suas contradições em trânsito entre o bem o mal, sem binarismos. E, nas contradições humanas, amo ver o que resta ainda de amor, de perdão, de um se colocar no lugar do outro numa verdadeira con-vivência para a sobre-vivência.

Nessas temporadas até agora derradeiras, há muito de vida perante a morte. Na abertura, ilustrações de moinhos de vento dependuradas em árvores; também na abertura, o moinho de vento imenso na comunidade de Hilltop lembrando-nos dos moinhos de vento em Dom Quixote (portanto nos lembrando da luta incessante contra o que é invencível, mas nos indicando no seu giro sem fim a luta pela vida, o ar movendo as pás, o ar que respiramos e muito mais forte do que as ilusões). Ainda na abertura, uma árvore florescendo e pássaros voando, cavaleiros e amazonas em seu cavalos, flor trepadeira brotando dum crânio ao chão e se alastrando sobre o longo cabo de um rastelo cravado nesse crânio, as pás do moinho rodando vitais diante das catástrofes ao fundo... E duma cena, dentro dum episódio, não me esqueço, porque quero amar as coisas belas da vida: Daryl Dixon, com sua besta às costas e em sua vida de lobo solitário na floresta, vê preso a um tronco de árvore um zumbi; pensa em “matá-lo” de uma vez por todas, mas percebe um pássaro colhendo-lhe das cavidades pequenas larvas e com elas alimentando, num ninho, filhotes com bicos cheios de vida e esfaimados; Daryl desiste de “matar” o zumbi, pois vê ali fonte de vida, vida pura e plena.

Neste mês de maio, estou atravessando melancolias pelas dores do Brasil e do mundo, mas dessas tristezas vou tecendo reflexões, porque ainda desejo profundamente acreditar na humanidade. Sonho que ela pode florir, política e religiosamente.

A Terra também se encherá de luz

12 de Abril de 2020, por Evaldo Balbino 0

O silêncio da noite é escuro e solidão. Um ruído ou outro se escuta, mas agora Belo Horizonte está sonolenta, um sono de quarenta anos no deserto. Um sono forçado em meio à pandemia de COVID-19, que assola o Brasil e o mundo. A areia é longa e árida, e o calor estende-se para longe, lá onde se podem ver oásis de vez em quando.

O horizonte não tem vozes. O céu de poucas nuvens também não mostra estrelas. E a Lua vaga pelo espaço imenso e vazio.

Cadê os bares, os risos, as pessoas conversando, namorando, tomando um drink e brindando a vida para sempre?

Cadê a Avenida Antônio Carlos movimentada, com os carros poluindo o impossível ar em nossas narinas?

Cadê as pessoas andando com os seus quefazeres infindáveis?

Cadê aquelas senhoras e aqueles senhores fazendo sua caminhada de todo dia? Estou com saudade daquela senhora aqui do lado, aquela dona cuja língua é longa e elétrica. E agora não a estou vendo; não a ouço mais debulhar vidas alheias. Possivelmente esteja neste momento debulhando seu rosário em casa, pedindo por si e por todos.

Cadê os moradores de rua (morando nela porque na vida passaram por processos de exclusão) que antes pediam comida, dinheiro ou qualquer outra coisa?

Cadê aquele cara, também morador de rua, que sempre ficava ali perto da lotérica na esquina, e que pedia centavos e ainda fazia questão de dizer que era para beber uma cachaça?

Cadê os gatos se amando de noite e vizinhos reclamando dos barulhos de amor? Cadê os ruídos de amor entre as próprias pessoas? Já não escuto mais o ranger de camas em outros apartamentos, pois estamos todos apartados de tudo.

Cadê a noite em si mesma existindo, cálida como sempre o foi em Belo Horizonte?

Cadê o homem com o seu pregão da pamonha ou dos tantos ovos por dez reais?

Cadê o rapaz da bicicleta, pedalando esperto e passando por nós com a imensa cesta de pães que ele vende para ganhar seu pão de cada dia e que nós compramos para matar nossa fome?

Cadê a moça da outra esquina, a que já não mais vende as flores para olhos que as cheiram de gula e de amor?

Onde está a cadela que virava e mexia brotava na rua, já parida e com tetas caudalosas, exibindo a todos nós que já era mãe mais uma vez e que deveríamos alimentá-la para que suas crias tivessem leite?

Onde o ônibus da minha rua, antes passando cheio de pernas e braços felizes ou cansados, e agora pouco passando, quase nada?

Onde as luzes de carros ofuscando meus olhos aqui na janela do meu prédio?

Cadê aqueles momentos de caraoquê, quando nossos ouvidos sempre reclamavam dos intratáveis candidatos a cantores? Agora quero ouvi-los a todos, a todas aquelas vozes de taquara rachada, indecisas entre acompanhar a melodia ou então ler gaguejando a letra da música na tela. E um descompasso gostoso entre a voz que cantava e a música e a letra.... tudo um fuzuê danado.

Lembro certa vez uma garota num caraoquê cantando “Porto solidão”, e eu ficando sem ar com voz tão bonita e potente, ela alçando ares como o fazia a voz do Jessé. Alçando ares e singrando mares: “Meu coração, a calma de um mar / Que guarda tamanhos segredos / De versos naufragados e sem tempo // Rimas de ventos e velas / Vida que vem e que vai / A solidão que fica e entra / Me arremessando contra o cais...”.

Da minha janela vejo agora o silêncio. Nem canto, nem prece, nem nada.

Da minha janela sinto a noite com medo e escondida. Pobre noite! Pobres olhos que a namoram!

Da minha janela ouço a solidão...

E de repente uma ambulância passa ali na avenida, rápida e barulhenta. Ela é rês perdida no campo sem flores. Ou melhor, é ovelha rápida indo guiar um pastor tresmalhado em algum canto desta cidade.

De novo o silêncio me atravessa, como atravessa esta noite em mim. E vou conversando com o escuro, silenciosamente.

Mas esperem... Agora escuto algo novamente! Sim, escuto! Um ranger de caminhão, vozes de rapazes enfeitando o lusco-fusco. São eles, os garis que tanto nos ajudam. Os garis que, como tantos outros profissionais, cuidam da nossa cidade. E escuto metais tinindo, garrafas se chocando, alguns cães ladrando como a proteger as casas dormidas. Escuto sacolas de lixo sendo jogadas na carroceria compactadora do veículo. Os garis vão limpando tudo, os restos de nossa vida trancada em meio a esta pandemia.

Agora passa um carro numa rua aqui perto, tocando música alta, buscando acordar a vida. É um funk solitário e solidário.

Cadê a solidariedade? Sei que ela existe, mesmo que agora guardando distância, fugindo de espirros, eximindo-se de toques em corpos alheios.

Olho para o céu sem estrelas e percebo que a Lua é hoje quarto crescente. E vejo um beijo que ela agora está dando numa nuvem errante pelo espaço. As duas bem juntinhas. Sinto esse beijo aqui em mim, e sei que o satélite da Terra vai crescendo até ficar cheio, feliz, pleno. A Terra também se encherá de luz.

Maria da Ritinha

17 de Marco de 2020, por Evaldo Balbino 1

A sua mãe Ritinha era viúva, e moravam ambas num casebre de São Vicente atrás da casa paroquial e da capela. Isso no Ribeirão de Santo Antônio, no topo do povoado. Ajudadas pela Conferência de São Vicente de Paulo, a mãe trabalhava a torto e a direito e a filha, Maria, fazia bonecas de pano num trabalho sem fim.

A mãe buscava sozinha água com latas na cabeça lá na cachoeira do Tibúrcio, fazia a comida, limpava a casa, cosia as roupas, remendava o que fosse necessário numa vida cheia de remendos. Passavam fome? Por mercê de Deus não. E também pela boa vontade dos conferencistas, confrades e consocias que esmolavam aqui e acolá e lhes conseguiam víveres para o dia-a-dia. Nem andavam nuas, que roupas de pano simples elas ganhavam, também da Conferência.

O tempo foi passando, e a mãe faleceu deixando a filha solteira, sozinha e já nos seus quarenta e tantos anos. Durante toda a vida, a dona Ritinha não lhe ensinara a fazer nada, nem serviço de mulher nem de homem, como se costumava dizer por aqueles tempos idos e, infelizmente, ainda muito se considera e se diz hoje em dia.

Celibatária e só, Maria não perdeu o amparo divino e o da Conferência de São Vicente. Mesmo assim, porém, passou apertos. Sua comida ou ficava crua e sem sal ou demasiadamente salgada e passada do ponto. A simples casinha demorou muito para ganhar ares de limpeza e um pouco de organização. Como sempre fizera desde nova, continuou, por quase toda a sua vida, fazendo bonecas de dar gosto em meninas que não tinham condições de comprar as cobiçadas bonecas industrializadas, as vistas nas mãos de filhas de fazendeiros.

Suas bonecas eram branquíssimas, feitas de pano que era restolho de tecido da Conferência. De rostos ovalados, levavam, ao invés de cabelos, panos pretos que lhes envolviam a cabeça com graciosidade como se fossem lenços. E de linha preta eram feitos seus olhos, nariz e boca. Os corpinhos delgados eram cobertos de vestidos coloridos. E braços e pernas se estendiam para a vida, porém com mãos e pés sem dedos. Na boniteza de tudo isso residia o que era mais bonito ainda: Maria dava as bonecas para todos, não cobrando nada em troca. Diziam que ela produzia os brinquedos por produzir, que não sabia trabalhar em outra coisa, que não tinha aprendido nada, que tinha preguiça... e continuavam em outras mais maledicências. Mas ninguém via o sorriso no rosto das crianças que recebiam as bonecas de pano. Ninguém via as tantas felicidades que essa criatura de Deus, a que “não sabia fazer serviço nem de mulher nem de homem”, levava a meninas que não podiam comprar brinquedos.

Maria da Ritinha, assim sempre chamada, foi envelhecendo. Era baixa e gorda. Andava bem-vestida com seus vestidos de cinto abotoado ou amarrado na frente da cintura, apertando sua barriga sobressalente e alegre.

Certa vez ela disse à Conferência, num tom choroso, que não tinha traje para as missas e os velórios, muito menos para qualquer festejo da vida. Bateu na sua casa, pois, um dos confrades:

– Tem como ver seu baú, dona Maria?

– Pra quê, se ando quase nua!? Basta minha palavra, ó sô!

Depois da teimosia, a conferência foi feita. E da caixa de roupas saíram alguns vestidos nunca usados. Uns floridos, outros sérios; uns rendados, outros lisos como um veludo que nos dá calma.

– A senhora não tá carecendo não, dona Maria.

– Ah, então vá! Se não qué dá, não dá, ora! – disse brava, mas sem perder o amor de vista. E nunca perdeu mesmo.

Contam que, quando iam alguns confrades trabalhar na capela ou na casa paroquial ou até mesmo na casa de São Vicente, com reformas e outros quefazeres, lá vinha a Maria com alegria, bule e canecas esmaltadas para servir café a todos. E se ela percebia algum resto de sujidade nas canecas, dava um jeito solícita com cuspe e o dedo indicador, limpando tudo para o bem de todos.

Muitos anos depois ela foi morar na vila, no que na época se chamava de “asilo”. Palavra forte, desoladora, porém usada. E lá terminou seus dias na face desta Terra.

No dia em que faleceu, foi levada de volta para o seu Ribeirão enrolada num lençol, nua como viera ao mundo. Cadê os vestidos de antes?! Nenhum. Dum pano florido, tia Fiinha costurou-lhe um vestido derradeiro, do jeito de que ela tanto gostava: com um cinto enlaçando-se na sua cintura agora magra e silenciosa.

Vó Laurinda

19 de Fevereiro de 2020, por Evaldo Balbino 0

Da minha avó materna, o que tenho de concreto são palavras dos que a conheceram e uma antiga fotografia.

Casou-se com meu avô aos 15 anos. Teve 09 filhos, vindo a falecer um deles ainda criancinha. Ela morreu jovem aos 38 anos com uma hemorragia inestancável, deixando órfã minha mãe que contava apenas dois anos. Estava minha avó grávida do décimo filho e fora chamada para ajudar no parto duma comadre. Tendo feito muita força nesse préstimo, logo depois começaram as cólicas, o seu sangue desatado, a fraqueza do corpo e por fim veio a morte. O bebê não-nascido morreu junto com a mãe, no seu seio sem vida.

Trabalhadora, diuturnamente ela enfrentava sol e chuva, sereno e frio, para cuidar da prole, das criações domésticas, da casa, do marido. Num terreno que eles tinham lá para as bandas do Saco das Abóboras, depois do cemitério do povoado, ela e o marido criavam algumas vacas com seus bezerros. E ela, todos os dias, saía do Ribeirão do Meio com latas grandes de banha, subia o morro para o Ribeirão de Cima, tirava leite das vacas, descia de volta com uma lata na cabeça sobre rodilha e outras duas pendidas dos braços, e dividia tudo com as mães do entorno, as que não tinham vacas para dar leite aos filhos. Na horta da sua casa, ela cortava canas e subia ela mesma com os feixes cortados para o Ribeirão de Cima, onde moía tudo no engenho do cunhado, o Antônio Gonçalves. Suas mãos diárias colhiam, secavam, pilavam, torravam e coavam com garapa o café que a família bebia. Labutava com o marido nas lavouras. Ele trabalhava também, mas era amante de bailes, Folias de Reis, sanfonas, festanças, noites atravessadas por músicas. Muitas vezes, pelas noites, deixava a jovem mulher em casa e ia para seus festejos.

Nas histórias sobre minha avó que me são narradas, vejo vida dura, talvez com alegrias, mas também com tristezas intratáveis. E até mesmo me pergunto se ela chegou a ser feliz num casamento atravessado por valores patriarcais, mesmo sendo ela mulher ativa, cheia de iniciativas no cuidado com a vida.

Mais real ainda do que as palavras, vejo a velha fotografia dela com o marido, recém-casados, num jubileu em Congonhas do Campo. Retrato em preto e branco, mais ou menos de 1929, porém me dizendo muita coisa e com vários matizes.

Ela e o recém-esposo na porta duma igreja na cidade dos profetas. Em sua barriga de mulher frutífera, já a primeira filha esperando a luz. Sua mão esquerda entre o braço direito dele caído e o paletó simples. No anular da mão farta de minha avó, a aliança do concerto, do matrimônio contraído até os seus 38 anos de idade. Nem muito gorda nem muito magra, já se mostra mulher tendendo a ter corpo mais cheio. Se o braço esquerdo cumpre o papel social de entrelaçar-se ao braço do esposo, o direito mostra-se caído, numa suposta entrega ao destino. No entanto, mesmo de braço direito derreado, a mão fecha-se numa concha, num encerramento de resistência e força.

Cabelos fartos os de minha avó, mas agora, neste retrato, contidos na cabeça, arrebanhados para trás num coque. Cabelo liso e brilhante, num tom castanho-escuro e numa arrumação para festas. Os dois sérios, como se exigia em fotos desse tipo na época, apesar de ele exibir nos olhos uma vaidadezinha de nada com seus óculos escuros.

O vestido dela não é justo, e sim um pouco largo. De tecido simples como o de uma dona de casa do povo na época e duma região rural mineira. Gola redonda em torno do pescoço, escondendo um corpo que não podia mostrar-se. Trivial o vestido, mas branco talvez num desejo de núpcias, de vida, de placidez da existência. Longo até a canela e com mangas compridas aparentemente franzidas deixando os punhos expostos. Sapato tipo boneca abotoando-se nos lados exteriores dos pés com os peitos à mostra. E suas pernas merecedoras de seda exibem meias três-quartos pretas de um tecido comum.

No semblante de minha avó vejo um pensamento vago, talvez um “o que que eu estou fazendo aqui?!”. Casada porque mulheres nasciam para casar-se. Rosto infantil e tendo que enfrentar o mundo como se ela fosse adulta. Vejo em seu olhar certa tristeza, ou então certo existir com uma vontade seguindo correntes d’água. Muito nova ainda e abrindo-se para a vida. Vejo algo melancólico nela, mas também uma vida pulsando. Vida essa que chegou até estas mãos que agora escrevem outro retrato de sua avó.