Retalhos Literários

Vó Quinha

16 de Agosto de 2020, por Evaldo Balbino 0

Lá em casa, a todos os rebentos do seu primeiro filho (Jesus – conhecido em Resende Costa por Didi Pedreiro) ela dava um apelido. Do mais velho ao mais novo: Elias (Nonô), Elton (Erto), Hélia (Fia), Edinéia (Néia), Edinei (Dola), Everaldo (Raldo – já falecido), Edicéia (Céia), Evaldo (Vardo), Elenice (Nice – também falecida) e Aline (Linda). Seu nome de batismo era Francisca. Mas para todos, dona Quinha.

Tinha alguns dedos meio tortos, pela vida que levara desde nova trabalhando no fogão a lenha e na friagem. Com os choques térmicos no corpo frágil, foi tendo problemas nos dedos com o tempo, mas isso nunca a impediu de trabalhar.

Certa feita, quando ainda jovem, ela segurava no colo um irmão mais novo (o tio Bastião), e uma roda de carro de boi passou-lhe sobre o pé esquerdo. Fez-se um corte fundo e de fora a fora, curado ali mesmo na roça com remédio caseiro, chá de horta, unguento e sal. Curou-se do acidente, mas sempre levou pela vida uma cicatriz no peito do pé.

Desde pequena, católica. Quando ouvia sobre Deus, erguia as mãos para o alto, conversando com o Ser Superior. E sempre foi benzedeira. Benzia com folhas de arruda os maus-olhados, as dores tantas, as febres. E não cobrava pelo bem que buscava fazer a todos.

Também benzia enfermos com garrafa d’água nas suas cabeças. Punha sobre elas um pano em rodilha e em cima dele uma garrafa cheia de água com o bico para baixo. O pano impedia a saída do líquido. E ela ficava ali, segurando a garrafa com a mão esquerda e com a direita fazendo o sinal da cruz na testa do adoentado.

Certo dia, quando a tarde se ia embora e a noite quase se avizinhava do Ribeirão de Santo Antônio, a tia Fiinha, irmã de minha mãe, chegou à casa da vó Quinha. Chegou fazendo careta, chorando dores, dizendo estar passando mal com uma enxaqueca das bravas. Vó Quinha não titubeou: a tia sentou-se sobre a cama do quarto de hóspede, perto da cabeceira, e a benzedeira em pé no seu ritual. Apoiou firme o pano no cimo da cabeça da enferma, colocou ali a garrafa d´água de bico para baixo, e foi gesticulando a cruz na testa da doente e dizendo convicta uma reza lá sua bem peculiar. Num trecho da prece, sua boca falou seriamente “Santa Maria sentou na pedrinha fria”, e do lado de fora da janela do quarto um dos netos lhe respondeu gritando: “Coitadinha, gelou a bundinha!”. Foi uma lamentação só a da vó Quinha! A Virgem Maria e Deus perdoariam aquela blasfêmia, porque o garoto era novo, aparentemente ingênuo em relação à fruta proibida que Adão e Eva comeram apesar de contrária ordem.

Era católica desde sempre. Mas depois de muitos netos vindos ao mundo, tornou-se evangélica. Seguiu o mesmo caminho que sua mãe Olívia trilhara anos atrás. Apesar de evangélica, nunca deixou o hábito de amar as folhas de arruda. Gostava muito de flores e ramas e as arrebanhava em muda onde quer que as visse, para levá-las e plantá-las no seu quintal.

As folhas de arruda iam direto para a sua proteção, entre as orelhas e os fios de cabelo liso bem rentes à cabeça e puxados para trás num rabo de cavalo ou num coque. De vez em quando as tais folhas tinham ainda a função de bendizer outras pessoas que não ela. Afinal, quem com o dom nasce, com ele permanece para sempre. E se dizia muito “ai, meu Deus!”, também soltava de vez em quando um “Nossa Senhora!” quando com algo se espantava.

Quando ela ainda morava no Ribeirão e nós já tínhamos mudado para a vila (Resende Costa), fui muitas vezes à sua casa. Era lá que eu vivia entre mato e céu. E foi lá que um dia ela pediu que eu lhe desse meu vidro de xampu. Alguns anos depois, voltando lá, fui encontrar o vidro intacto, guardado debaixo de um colchão de palha. Me disse que só o usaria quando carecesse.

Depois disso, em meados dos anos 1990, meu pai a buscou lá do Ribeirão, e ela e o vovô Geraldo, seu marido, passaram a morar na rua da nossa casa. Logo depois vim para Belo Horizonte.

Quando ainda fazia menos de um ano do falecimento do vovô, fui a Resende Costa e a visitei. Na saída, ela me chamou pela janela da sala, eu já estando na rua, e me pediu que, quando voltasse, levasse-lhe balas e das bem doces. Prometi que levaria.

Mas não levei. O meu próximo retorno à cidadefoi para o seu velório. Uma dor nos atravessando a todos, muita gente, uma chuva forte na caminhada para o cemitério. Fiquei o tempo todo ao lado do meu pai, o Didi Pedreiro, homem forte nas perdas da vida.

Tia Denita

12 de Julho de 2020, por Evaldo Balbino 0

Uma das filhas da minha bisavó Olívia, tia Denita falava de modo trêmulo, afagando o queixo com o polegar e o indicador da mão direita. Poucas vezes a vi em Resende Costa. Morava num sítio no povoado do Cajuru (pertencente ao município), aonde fui somente uma vez.

Lembro bem o dia. Meu pai, pedreiro desde sempre (construtor de vidas porque erguendo abrigos para os nossos corpos tão carentes de proteção), estava no povoado fazendo a reforma da Capela de Santo Antônio do Cajuru. Quando o vi nas alturas do templo, lá estava ele terminando de erguer a torre. E ela parecendo, no seu topo, quase uma pirâmide. Torre quadriculada apoiada em quatro colunas e se mostrando como um prediozinho de três andares: a entrada para a igreja, uma janela um pouco mais acima e outra janela, mais acima ainda, ostentando o sino badalador. Nas laterais da torre, ainda na fachada da ermida, outras duas janelas. Nos flancos do santuário, mais portas e janelas deixando o edifício respirar. E todas elas quadradas na base, com dois ângulos retos dos lados, e semicirculares na parte superior, dando ao mesmo tempo a ideia da rigidez na entrada para o céu e da delicadeza nas curvas, uma abertura a permitir que todos nós, sem nenhuma exceção mesmo, possamos entrar na Terra Prometida.

Meu pai e um servente cuidavam da reforma da nave, e minha mãe, indo ver o marido para amainar saudades, aproveitou para visitar parentes no povoado e comprar tecidos na dona Hercília. Fomos, pela estrada de terra, na carroceria de um caminhão que transportava latas de leite. E na casa da vendedora Hercília eram tramas tantas, fatos para diferentes gostos e bolsos, desde o mata-borrão e a chita, até passar por tecidos caros de algodão e fina seda. Ao lado esquerdo da igrejinha, para quem a olhasse de frente, plantavam-se quatro casas humildes e silenciosas, nas quais moravam, de modo enfileirado, o sr. Gilmar, o seu Luís Antero, o seu Ibrahim e o Antônio do Adilino. A casa da Hercília ficava antes, mais para cá da igreja, perto do campinho de futebol.

Entre todos os parentes visitados, a tia Denita.

Como eu já disse, poucas vezes pude vê-la. A primeira foi num batismo da nossa igreja no Ribeirão de Santo Antônio: todos os fiéis reunidos ao lado do tanque de imersão, ela com o véu na cabeça, hinário nas mãos em posição de louvor, um canto fino e alto querendo chegar ao céu. Umas duas ou três vezes me encontrei com ela em Resende Costa mesmo, também congregando nós dois.

Agora, no Cajuru, eu revia suas mãos. Trêmulas ainda, pois desde sempre as vi idosas, avançando pelo tempo, lutando contra a morte. Os dedos meio que encurvados, já pejados do mergulho em água fria para lavação de roupa, já gastos pelo roçar da faca no cortar carnes e legumes, já enrugados pelo calor do borralho, já retalhados em plantios e colheitas do antigamente. O mesmo hábito já visto: a mão direita sobre o queixo, no qual se fechavam o polegar e o indicador enquanto ela falava. E o queixo com umas poucas penugens, pelos ralos e parcos que ali cresciam e com relação aos quais ela não manifestava nenhuma vaidade. Não os arrancava, antes os acariciava com o polegar e o dedo indicador.

E sua fala, também trêmula, era rápida, meio abafada, num descompasso que os meus ouvidos de criança lutavam para entender. E contava casos, e ouvia atenta, e falava tanto sobre tudo e todos. E como ria do que escutava! Gargalhava para a vida. Porque a vida precisa de risos e sorrisos. Um siso duro e carrancudo não faz bem a nenhum ser.

Tia Denita era baixa. Andava meio corcunda, a coluna envergada pelos anos. Os pés quase plantados no chão, com sapatos semifechados de fivela por cima ou então com sandálias de couro e meias para guardarem do frio o corpo que tanto frio enfrentou na sua existência.

E me lembro dela falando de geadas, de orvalhos ensopando gramas, do tilintar de vidas que madrugavam para a labuta da roça e da casa. E dos homens tantos, mais filhos homens do que filhas mulheres nas casas esparsas, roupa a ser lavada, sabão de sebo a ser fabricado nos terreiros das cozinhas, e os capados em preparo, a varrição do quintal que não tinha fim, e a dura semeadura sob um Sol pura lâmina cortante, a capina nos tempos necessários, a ceifa de fazer arderem braços e olhos e mãos. O plantar e colher incessantes da vida.

E nesse viver sem fim uma vida dura e boa, ela também foi colhida um dia. A foice da vida sempre ceifando. E agora, na lavra da palavra, revivo-a no que semeio. Escrever é ressuscitar o que o tempo mata.

Viagens pelo mundo e pela eternidade

14 de Junho de 2020, por Evaldo Balbino 0

São as palavras em estado de arte que nos propiciam os passeios verdadeiros pelo tempo. Se não apenas elas, também elas, e de um modo único que só pertence ao discurso estético. Eu sou estas minhas mãos que escrevem, e nada mais.

Quando criança, eu me encantava com a possibilidade de uma ficção científica: a de atravessar o tempo, indo para sítios que não mais existem ou que estão no porvir. Sempre amei essa probabilidade fortemente poética porque ficcional. Eu ganhava isso em filmes, em desenhos animados, nas irrealidades que a televisão projetava e também nos livros de literatura. E essas viagens me eram dadas com regalia, com o direito de eu participar de todos os enredos ofertados infindavelmente.

Sou um mero escrevedor, alguém apaixonado pelas palavras e pelo que elas podem artisticamente nos proporcionar. Nada mais que isso.

Lembro que, certa feita, pediram para eu mesmo fazer a resenha de um livro meu a ser publicada num jornal de grande circulação. Por orgulho, não a fiz. Por orgulho sim. Mas não uma empáfia besta. Tive foi um sentimento pleno de sinceridade, de ética suficiente para não dizer de mim mesmo o que, obviamente, desejo que outros digam.

Pois desejo sim ser lido, amado. Quem não deseja isso? Quem não deseja, sob algum aspecto, ser desejado, querido, acarinhado pelo outro? Eu desejo, e o meu DESEJO é assim mesmo, em letras garrafais, imensas, imensuráveis. Não consigo desejar pouco. O mar é pequeno para o que sonho. Mesmo o mar imenso e profundo existindo distante de quem fala entre as montanhas de Minas. Aqui o mar não existe, e eu insisto em ter um sonho maior do que ele. Mas em que consiste mesmo o meu sonho? Falando aqui da literatura, da minha inserção na literatura mineira e na brasileira, o meu sonho é ser lido por pessoas que amem ler, que olhem para as palavras amorosamente, que sintam comigo o que elas, as palavras, podem dizer. Quero, enfim, que os leitores toquem o mundo como eu o toco, e sempre através das potências do verbo literariamente trabalhado.

Isso, decerto, seja sonhar muito. Talvez seja muito eu querer ser lido, querer atravessar latitudes, geografias, limites que os homens constroem pelo mundo. Maior ilusão do que a de querer atravessar o tempo não existe. No entanto, cônscio dessa grande miragem, não deixo de buscá-la para perto de mim, de abraçá-la, de tentar retê-la como, supostamente, os relógios retêm as horas. É isto mesmo: quero, pelas palavras, viajar pelo tempo, atravessá-lo com o meu pó de pirlimpimpim. E esse meu pó são as palavras que toco, que me tocam e que me dão certo poder.

E paradoxal também é querer ser lido, ser gostado, e ao mesmo tempo sentir certa timidez, certa vergonha quando alguém elogia o meu trabalho. Paciência, não é?! Cada um de nós tem seus limites, suas contradições. Eu tenho as minhas. Contudo fico feliz quando elogiam o meu trabalho. Uma felicidade indecisa, mas feliz. Tenho consciência de que faço arte, mesmo que pequena. E espero fazê-la de modo suficiente à sede humana de leitura; de modo a satisfazer, pelo menos momentaneamente, os olhos e as mentes daqueles e daquelas que, do mesmo modo que eu, vivem. Vivem e almejam viajar pelas palavras e com elas. E que vivendo todos nós possamos, também pela literatura, viver mais e cada vez mais.

De repente, talvez, as minhas constantes demonstrações de religiosidade (duma fé que se deseja inabalável mesmo sabendo que não o é) sejam um modo de eu querer penetrar o tempo, atravessá-lo para um muito além sem tempos, lá onde tudo é eternidade.

Assim, entre palavras vou escrevendo meus espantos na vida e meus desejos nela e por ela. Vou nesse ofício de gostar do que faço. Gosto de poetar. Um bom verso me faz tremer, como os trovões nos abalam nas grandes montanhas, mineiras ou não. Gosto de escrivinhar minhas garatujas. E isto me é tudo: os traços que vou traçando numa tentativa de delinear o mundo e me delinear. Sei que isso é impossível em sua plenitude, mas a tentativa é sempre válida. O desejo por si mesmo já é a coisa desejada.

E assim vou desejando com palavras que não acabam mais. As palavras alheias e as minhas, que todas são um só caminho, uma ponte única e extensa querendo unir tudo e todos entre si e com o outro lado: a eternidade. Afinal vivemos também, e principalmente, nas páginas alheias.

The walking life

10 de Maio de 2020, por Evaldo Balbino 0

Em vídeo postado nesta semana de maio de 2020 nas redes sociais, o velho e grande Lima Duarte comenta que entende a despedida do Flávio Migliaccio, que decidiu partir desta vida no início desta semana.

Lima Duarte e Flávio Migliaccio são artistas com A maiúsculo. Artistas num país em que, parece, artistas não valem nada, pessoas não têm valor, idosos são restolho de vida.

Aliás, nos últimos três anos, artistas no Brasil são tidos cada vez mais como desnecessários, e mais ainda porque o próprio poder instituído vocifera isso aos quatro ventos, com seguidores propalando violência e ódio. É o que estamos vivendo: o máximo poder político da nação e seus seguidores estão semeando o bafo podre da ditadura, da censura, do autoritarismo.

Artistas para quê? A fome de beleza, parece, está obnubilada nas cabeças de muitos. Tenho a sensação de que o ódio está vencendo a beleza, todo tipo de beleza.

Sempre acreditei e ainda luto para acreditar no Brasil. Mas este meu país tem mostrado, cada vez mais, que ele precisa ser refeito. Se instituições nãos nos guardam, se nós não nos amamos, apelemos para Deus. Mas Deus requer nossa parte na refeitura deste planeta chamado Terra. Cadê a nossa parte?!

Digo o que diria Drummond: E agora, José?.

Parabéns, Migliaccio! Parabéns, Lima! A trajetória de vocês dois, num país em que artista é vintém de cobre (Viva Cora Coralina!), é algo imenso e louvável, apesar do ódio que nos rodeia, não só em grande parte do Congresso e entre muitos dos que estão nos meandros políticos, mas também entre tudo e todos.

O ódio com roupa de morte atravessa uma sociedade – dita cristã – em que muitos estão esquecidos do que deveria ser de fato um cristão, do que deveria sem dúvida alguma ser resumo de tudo: AMOR. Aliás, foi esse sentimento que o próprio Cristo ensinou. Acrescento mais: o amor é alicerce dos grandes e evoluídos pensamentos político-religiosos, portanto não apenas do pensamento de Jesus Cristo. E mais ainda, o amor tem a ver com ética, com respeito, com diálogo, com a con-vivência, com o viver com. O que, entretanto, os chamados cristianismos muitas vezes fizeram e vêm fazendo em nome de Deus ou de Cristo não é demonstração de amor.

O vídeo de Lima Duarte deveria ser visto por todos os brasileiros. Até mesmo por aqueles que, historicamente, foram despojados duma formação que poderia ter-lhes dado acesso a uma consciência político-religiosa libertadora.

Esse mesmo vídeo, melancólico mas libertador porque portador de nobres sentimentos, foi gravado agora, em pleno mês de maio. Atravessamos, na política brasileira e na saúde brasileira e mundial, dores profundas. Mas insisto: estamos em maio. Mês de Maria, mãe de Jesus; mês das mães, das noivas e dos noivados, dos casamentos, das núpcias; mês amarelo cheio de coisas brilhantes semeando vidas.

Neste mesmo mês de maio, numa quarentena a que bilhões de pessoas estão sujeitas na Terra, assisti às até agora duas últimas temporadas da famosa série The walking dead. Milhões de pessoas, talvez, vejam essa série pelo suspense, pelo terror, pelos zumbis que, caminhando como vivos e ávidos por sangue quente, são um perigo andante pela vida. Eu, entretanto, vejo na série o que há de análise do ser humano, em todas as suas contradições em trânsito entre o bem o mal, sem binarismos. E, nas contradições humanas, amo ver o que resta ainda de amor, de perdão, de um se colocar no lugar do outro numa verdadeira con-vivência para a sobre-vivência.

Nessas temporadas até agora derradeiras, há muito de vida perante a morte. Na abertura, ilustrações de moinhos de vento dependuradas em árvores; também na abertura, o moinho de vento imenso na comunidade de Hilltop lembrando-nos dos moinhos de vento em Dom Quixote (portanto nos lembrando da luta incessante contra o que é invencível, mas nos indicando no seu giro sem fim a luta pela vida, o ar movendo as pás, o ar que respiramos e muito mais forte do que as ilusões). Ainda na abertura, uma árvore florescendo e pássaros voando, cavaleiros e amazonas em seu cavalos, flor trepadeira brotando dum crânio ao chão e se alastrando sobre o longo cabo de um rastelo cravado nesse crânio, as pás do moinho rodando vitais diante das catástrofes ao fundo... E duma cena, dentro dum episódio, não me esqueço, porque quero amar as coisas belas da vida: Daryl Dixon, com sua besta às costas e em sua vida de lobo solitário na floresta, vê preso a um tronco de árvore um zumbi; pensa em “matá-lo” de uma vez por todas, mas percebe um pássaro colhendo-lhe das cavidades pequenas larvas e com elas alimentando, num ninho, filhotes com bicos cheios de vida e esfaimados; Daryl desiste de “matar” o zumbi, pois vê ali fonte de vida, vida pura e plena.

Neste mês de maio, estou atravessando melancolias pelas dores do Brasil e do mundo, mas dessas tristezas vou tecendo reflexões, porque ainda desejo profundamente acreditar na humanidade. Sonho que ela pode florir, política e religiosamente.

A Terra também se encherá de luz

12 de Abril de 2020, por Evaldo Balbino 0

O silêncio da noite é escuro e solidão. Um ruído ou outro se escuta, mas agora Belo Horizonte está sonolenta, um sono de quarenta anos no deserto. Um sono forçado em meio à pandemia de COVID-19, que assola o Brasil e o mundo. A areia é longa e árida, e o calor estende-se para longe, lá onde se podem ver oásis de vez em quando.

O horizonte não tem vozes. O céu de poucas nuvens também não mostra estrelas. E a Lua vaga pelo espaço imenso e vazio.

Cadê os bares, os risos, as pessoas conversando, namorando, tomando um drink e brindando a vida para sempre?

Cadê a Avenida Antônio Carlos movimentada, com os carros poluindo o impossível ar em nossas narinas?

Cadê as pessoas andando com os seus quefazeres infindáveis?

Cadê aquelas senhoras e aqueles senhores fazendo sua caminhada de todo dia? Estou com saudade daquela senhora aqui do lado, aquela dona cuja língua é longa e elétrica. E agora não a estou vendo; não a ouço mais debulhar vidas alheias. Possivelmente esteja neste momento debulhando seu rosário em casa, pedindo por si e por todos.

Cadê os moradores de rua (morando nela porque na vida passaram por processos de exclusão) que antes pediam comida, dinheiro ou qualquer outra coisa?

Cadê aquele cara, também morador de rua, que sempre ficava ali perto da lotérica na esquina, e que pedia centavos e ainda fazia questão de dizer que era para beber uma cachaça?

Cadê os gatos se amando de noite e vizinhos reclamando dos barulhos de amor? Cadê os ruídos de amor entre as próprias pessoas? Já não escuto mais o ranger de camas em outros apartamentos, pois estamos todos apartados de tudo.

Cadê a noite em si mesma existindo, cálida como sempre o foi em Belo Horizonte?

Cadê o homem com o seu pregão da pamonha ou dos tantos ovos por dez reais?

Cadê o rapaz da bicicleta, pedalando esperto e passando por nós com a imensa cesta de pães que ele vende para ganhar seu pão de cada dia e que nós compramos para matar nossa fome?

Cadê a moça da outra esquina, a que já não mais vende as flores para olhos que as cheiram de gula e de amor?

Onde está a cadela que virava e mexia brotava na rua, já parida e com tetas caudalosas, exibindo a todos nós que já era mãe mais uma vez e que deveríamos alimentá-la para que suas crias tivessem leite?

Onde o ônibus da minha rua, antes passando cheio de pernas e braços felizes ou cansados, e agora pouco passando, quase nada?

Onde as luzes de carros ofuscando meus olhos aqui na janela do meu prédio?

Cadê aqueles momentos de caraoquê, quando nossos ouvidos sempre reclamavam dos intratáveis candidatos a cantores? Agora quero ouvi-los a todos, a todas aquelas vozes de taquara rachada, indecisas entre acompanhar a melodia ou então ler gaguejando a letra da música na tela. E um descompasso gostoso entre a voz que cantava e a música e a letra.... tudo um fuzuê danado.

Lembro certa vez uma garota num caraoquê cantando “Porto solidão”, e eu ficando sem ar com voz tão bonita e potente, ela alçando ares como o fazia a voz do Jessé. Alçando ares e singrando mares: “Meu coração, a calma de um mar / Que guarda tamanhos segredos / De versos naufragados e sem tempo // Rimas de ventos e velas / Vida que vem e que vai / A solidão que fica e entra / Me arremessando contra o cais...”.

Da minha janela vejo agora o silêncio. Nem canto, nem prece, nem nada.

Da minha janela sinto a noite com medo e escondida. Pobre noite! Pobres olhos que a namoram!

Da minha janela ouço a solidão...

E de repente uma ambulância passa ali na avenida, rápida e barulhenta. Ela é rês perdida no campo sem flores. Ou melhor, é ovelha rápida indo guiar um pastor tresmalhado em algum canto desta cidade.

De novo o silêncio me atravessa, como atravessa esta noite em mim. E vou conversando com o escuro, silenciosamente.

Mas esperem... Agora escuto algo novamente! Sim, escuto! Um ranger de caminhão, vozes de rapazes enfeitando o lusco-fusco. São eles, os garis que tanto nos ajudam. Os garis que, como tantos outros profissionais, cuidam da nossa cidade. E escuto metais tinindo, garrafas se chocando, alguns cães ladrando como a proteger as casas dormidas. Escuto sacolas de lixo sendo jogadas na carroceria compactadora do veículo. Os garis vão limpando tudo, os restos de nossa vida trancada em meio a esta pandemia.

Agora passa um carro numa rua aqui perto, tocando música alta, buscando acordar a vida. É um funk solitário e solidário.

Cadê a solidariedade? Sei que ela existe, mesmo que agora guardando distância, fugindo de espirros, eximindo-se de toques em corpos alheios.

Olho para o céu sem estrelas e percebo que a Lua é hoje quarto crescente. E vejo um beijo que ela agora está dando numa nuvem errante pelo espaço. As duas bem juntinhas. Sinto esse beijo aqui em mim, e sei que o satélite da Terra vai crescendo até ficar cheio, feliz, pleno. A Terra também se encherá de luz.